O River morreu. Viva o River

Apesar da humilhante derrota do São Paulo no fim de semana (ainda que não surpreendente), o fato do fim de semana para mim foi na Argentina. E não vou esconder: não derramei uma lágrima pelo rebaixamento do River Plate. Nada contra o time de Nuñez, mas é que não se chora a morte de alguém morto há anos. A pá de terra sobre o caixão do River veio agora, mas o campeonato argentino está enterrado há muito tempo. E cabe aos argentinos ressuscitá-lo.

Não choro uma lágrima não por antipatia pelo River nem por simpatia ao Boca ou desprezo ao futebol argentino. É que sinceramente não encontro nenhuma frustração que já não me aflija há anos. É uma espécie de luto já vivido. A Libertadores recém-conquistada pelo Santos está tecnicamente enterrada há pelo menos uma década. Ela sumiu quando Boca e River se mediocrizaram (o River, há bem mais tempo que isso). O torneio sulamericano segue dificílimo de ser vencido, mas por condições psicológicas, de atmosfera, arbitragem, sorteio, etc. A “morte” técnica aconteceu com a falência do campeonato argentino – leia-se Boca e River Plate.

O futebol dos nossos vizinhos é tão brilhante quanto o brasileiro (guardadas as dimensões dos dois países). As similaridades avançam também para a extensão da corrupção feudal da federação e de como os granmdes clubes recebem favores da AFA em troca de poder. Como clubes “grandes” leia-se “Boca e River”, por mais que se possa falar dos títulos de LIbertadores do Estudiantes ou afins. Tudo no futebol argentino foi montado para atender as necessidades dos dois – calendário, formato dos campeonatos (que conseguem levar a sério um torneio que tem dois campeões por ano), participações em competições sulamericanas (a Copa Sulamericana é uma piada completa para poder ter Boca e River por exigência da emissora de TV argentina que transmite o torneio) e até o risível sistema de rebaixamento por média, com o qual se imaginava poder poupar os dois titãs de jogar a Série B. Até isso faliu.

Claro que é triste ver o River rebaixado, mas o torcedor está sentindo agora uma dor que já tem há tempos e não fez nada para evitar. O clube está falido como instituição, rifou suas divisões de base a empresários como Kia Joorabchian e Pini Zahavi, encheu seu elenco com jogadores indizivelmente limitados, apostou em técnicos ex-jogadores, que como técnicos são ex-jogadores (ou seja, se tiverem um estágio de evolução passarão a ser incompetentes funcionais). A torcida assistiu isso quieta. A sociedade assistiu isso quieta. A imprensa assistiu isso quieta. E dizer que não foi quieta porque grunhiu nas arquibancadas, ou supostamente fez manchetes de protesto é risível. Ninguém se organizou para tirar o bando de meliantes da direção do River nem organizou séries de matérias jornalísticas para mostrar à sociedade o que acontecia. Esperar isso do governo é aguardar a descida do Todo-Poderoso. Esperar isso da federação é imaginar que o pior criminoso sairá da penitenciária numa cruzada pela correção.

Hoje o River tem em nomes como Lamela e Funes Mori suas “promessas”, cujos nomes seguem na shortlist dos grandes clubes europeus há muitos meses (no caso de Funes Mori, há anos). Mas isso porque eles já pertencem há empresários. Tecnicamente, nenhum deles – nem nenhum outro jogador do River – está à altura da tradição do clube. Villalva, Ríos, Maidana, Abelairas, todos são nomes frequentes dos noticiários italianos, mas no River, seguem sempre jogando como o medíocre time atual. Parte da causa da ruína Millonaria está aí, nessa asquerosa confluência entre a política do clube e empresários que não agregam, absolutamente nada ao funcionamento do sistema – só tiram.

Já acreditei que o rebaixamento era o melhor caminho para a reestruturação de clubes grandes, mas não acredito mais. Corinthians, Palmeiras, Grêmio e outros já caíram e seguem na mesma miséria administrativa de antes ou pior. Ao torcedor do River, vale o alerta de que não se deve acreditar que as coisas não podem ficar pior – sempre podem. A reconstrução do clube só virá se a torcida – a parte decente da torcida e não a horda de marginais que destruiu Buenos Aires ontem – se organizar para fazer alguma coisa. Salvar o futebol argentino parece mais distante. Para isso, seria preciso se livrar de uma tão podre quanto enraizada na federação, que é dirigida por um cartola de uma laia à altura de Ricardo Teixeira ou Nicolas Leoz. Nesse caso, pensar em termos de gerações já é uma visão otimista.

Cassiano Gobbet
Cassiano Gobbet é jornalista, formado pela Universidade de São Paulo e mestre em jornalismo digital pela Bournemouth University.
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