Há mais entre o céu e a terra do que sonha nossa vã mediocridade

Dois dias depois do assassinato do menino boliviano em Ururo, as redes e a cidade de São Paulo ainda debatem a correção ou não da punição ao Corinthians. A verdade é que o Corinthians não tem que ser punido. Quem precisa ser punido é o Brasil e sua sociedade, assim como a Inglaterra o foi após Heysel. A discussão obscena que varia de lado conforme o clube do opinionista precisa acabar. É hora do país amadurecer também nas suas responsabilidades. Se a Conmebol tivesse um átomo de decência, baniria clubes brasileiros das competições sulamericanas por um período. E aí, talvez, o país parasse para pensar como país e não com um fanatismo torcedor que nos corrói do futebol à política.

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Há alguns fatos incontestáveis. A horda de vagabundos que foi a Ururo teve patrocínio do Corinthians, ainda que indiretamente – para dizer o mínimo. O clube deve, sim, ser responsabilizado e punido, muito mais severamente do que com a perda do mando de campo. A comparação do assassinato do menino com a confusão que o Tigre aprontou no Morumbi é digna de dó. Não há paralelo possível. Entre tantas diferenças, no episódio de Sao Paulo, ninguém foi assassinado. Contudo, isso não isenta o São Paulo, o Palmeiras ou quem quer que seja desta culpa “global”, cultural, que nos faz tão mesquinhos e irresponsáveis como povo e que está no cerne da imoralidade disseminada que estimula um bandido a levar uma arma ao estádio. Estamos todos no banco dos réus.

O debate é revoltante. Não o debate em si, mas o raciocínio por trás dele. O corintiano – e o torcedor de outros times – não se dá conta de que o incidente de Ururo é apenas um apêndice. A Gaviões da Fiel, decantada em prosa e verso por qualquer corintiano na hora dos títulos, é uma organização com fins em si mesma e que usa a camisa do clube mais popular do país (desculpem flamenguistas, não sou eu que digo – basta se ver as audiências de TV para entender isso) para angariar fundos, poder, influência e – o mais importante – uma exposição que a irrelevância de seus membros jamais teria em qualquer momento. Ururo é um apêndice previsível de um descaso imoral que, volta e meia, deixa mais uma lápide como lembrança.

O revoltante da coisa se dá porque a apologia incondicional que se faz ao “culto” do clube é que monta culturalmente esse monstro disforme erroneamente chamado de “paixão”. O que faz um cidadão viajar para a Bolívia num meio de semana, armado com um foguete sinalizador é uma doença, uma obsessão indômita, alimentada pela imprensa, mas originária de uma vida frustrada e sem sentido. Somente isso pode explicar a insânia do ataque à torcida boliviana, ataque esse que as dezenas de pessoas em volta do mentecapto não fizeram nada para impedir. A Gaviões não é pior nem melhor que nenhuma outra “organizada”. Esse tipo de organização é um aparato hostil similar aos SA que ajudaram Hitler a subir ao poder, com a conivência da sociedade como um todo, com a anuência de um Estado omisso e com a colaboração e cumplicidade do clube, que usa politicamente da força que essa instituição nefasta angaria.

Naturalmente que a instituição Corinthians, o inexplicável sentimento que faz crianças e idosos se reunirem diante da TV ou num estádio e que une gerações, como o mesmo sentimento em tantos outros clubes, não tem culpa. Contudo, infelizmente, essa instituição hoje está personificada em uma série de indivíduos – diretoria, jogadores, torcedores organizados – que precisam ser punidos por ação e/ou omissão. E os outros clubes, se alegarem que não têm culpa, na melhor das hipóteses, vivem na negação do fato de que se alimentam desse hype hipnótico e que a aberração de Ururo poderia vestir qualquer outra cor.

É chegada a hora do Brasil deixar de ser o adolescente irresponsável e malandro para ser o adulto que os tempos exigem. Não dá para querer ser chamado de país moderno fazendo concessões de tal tamanho. Não dá mais para viver as pantomimas de circos jurídicos (particularmente obscenos no esporte). Essa falta de rigor revela um caráter macunaímico que nós temos por circunstância, mas que não precisamos carregar para sempre. Corintianos, sãopaulinos e torcedores de todas as cores – brasileiros – deveriam se unir e pedir à Conmebol uma punição draconiana para o futebol brasileiro como um todo. O modelo canceroso do futebol brasileiro e suas figuras patéticas da cartolagem que o dirigem precisa ser suplantado por um modelo digno de um país que quer ser respeitado, não pela sua economia, mas pela autodeterminação de sua sociedade. Infelizmente, eu sei que isso é utópico. Mais uma vez, o pacto de mediocridade deve vencer abrigando o máximo de gente possível com uma absolvição criminosa. Se nós não temos firmeza de caráter nem para punir assassinos, vamos exigir respeito de quem?

Cassiano Gobbet
Cassiano Gobbet é jornalista, formado pela Universidade de São Paulo e mestre em jornalismo digital pela Bournemouth University.
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