Barcelona x Real, confronto de culturas

É engraçado como a rivalidade entre Barcelona e Real Madrid consiga fazer um campeonato sem graça, como é o espanhol, rivalizar em termos de interesse com ligas como a inglesa ou a alemã. O confronto de Mourinho com o mundo ganhou muito mais manchetes do que o sensacional resultado do Arsenal que reabriu um campeonato no qual ainda há uma disputa verdadeira pelo título. O caráter lúdico do bem contra o mal, José Mourinho contra Guardiola, Messi contra Ronaldo, Franquistas contra Catalães é muito mais apetitoso do que o esporte sozinho. E ainda há quem não consiga ver a cultura no futebol.

A maior força do Campeonato Espanhol está na integração cultural dos seus clubes e no modo como eles interpretam suas regiões. Não é só o Barcelona. O Athletic Bilbao é uma fortificação, mesmo quando colhe resultados sofríveis em campo. Não pára de produzir bons jogadores, mesmo com o xiismo basco que rejeita estrangeiros (e que no contexto do Bilbao, é sensacional). Llorente, Muniain, Mikel San José (e Azpilicueta, do basco Osasuña) podem não ser gênios, mas é fenomenal que um clube consiga se manter assim (como fazia até a década retrasada, também o Piacenza, que só tinha jogadores italianos). A Inglaterra tem uma liga sensacional, mas é um torneio global, cosmopolita. A Espanha tem quase 70% de espanhois em seu torneio, cerca de 50% a mais do que a Inglaterra. Os clubes mantém os costumes de suas regiões.

O contraponto dessa afirmação regional e comunitária é que o campeonato, em si, como disputa legítima entre concorrentes similares, é risível. Não que Valencia, Deportivo ou Villarreal sejam time ruins (poderiam ter papeis importantes na França ou Itália atuais, diga-se). O ponto é que são literalmente clubes em outra divisão. O sucesso do Real Sociedad no sábado sobre o Barcelona só foi possível porque o Barcelona estava visivelmente em retiro mental para o jogo desta semana pela LC. No aspecto da competitividade, a liga espanhola é inexistente e o desapareceu o sopro de vida que deram Valencia e Deportivo com seus títulos há alguns anos, até porque o Barcelona voltou a ser o Barcelona. E o Real?

O Real Madrid não é o Real Madrid mítico de sempre. Johan Cruyff disse (pertinentemente) nesta semana que o exploit de José Mourinho não é culpa dele, mas de uma mentalidade que está ficando mais obsessiva no Real, que acredita ser lícito usar qualquer recurso para tirar o Barça do topo. As campanhas de reforços do Real, com dispêndios vergonhosos de dinheiro, dão razão a ele. O destempero público de Mourinho (inclusive contra membros do próprio clube) idem. Assim como a agressão de Sergio Ramos a Puyol (dois campeões europeus e mundiais jogando lado a lado) no jogo de ida entre Barça e Real pelo Espanhol.

Também dá razão a Cruyff o fato do Real tentar buscar desesperadamente um jogador que possa assumir o papel que foi de Raúl com contratações milionárias. Kaká e Cristiano Ronaldo chegaram com essa incumbência, mas dificilmente o serão. Por mais craques que seja, não nasceram no berço madrileno e por isso, jamais terão o DNA do clube, coisa que o Barcelona tem de sobra. O time do Barça não tem só o melhor jogador do mundo e de sua geração, mas tem também a Catalunha consigo. O Real não.

As entressafras de títulos servem para renovação e essa renovação tem um tempo que não se pode alterar com dinheiro. O Real só vai voltar a ter o sucesso suficiente (porque em Madrid não basta vencer, é preciso convencer, assim como em Barcelona, Amsterdam, Manchester ou Milão) quando se reencontrar como clube e sua torcida sabe disso. É por isso que não raro nesta temporada, o Santiago Bernabéu vaiou o time, mesmo quando este venceu. Esse fascínio suscitado por este estofo cultural ao redor de Real e Barça é o que faz com que os confrontos dos dois clubes pareça tão mais apelativo do que outros, do que outras ligas que têm até mais interesse, do que jogos que em tese sejam mais equilibrados. Grandes craques e grandes clubes fazem grandes jogos e despertam grande interesse. Mas é essa identidade mágica entre o clube e o ambiente no qual ele se insere que fazem as partidas transcenderem. Tivesse o Real um time tão genuíno quanto o Barça, o espetáculo seria ainda maior e mais fascinante, mesmo que isso soe inacreditável.

Cassiano Gobbet
Cassiano Gobbet é jornalista, formado pela Universidade de São Paulo e mestre em jornalismo digital pela Bournemouth University.
Top