A (cansativa) falácia da unificação

Escrever é uma fatica nera, como se diz em italiano. Quando você começa, não sabe mais quando pode parar. É um hábito que se torna quase físico e que precisa ser exercido independente daquilo que você racionalmente quer fazer. É por isso que me senti compelido a retornar a um assunto tão tolo, supérfluo e irrelevante quanto os argumentos usados para defendê-lo: a malfadada “unificação” dos títulos brasileiros.

Primeiro, vamos esclarecer uma coisa. Ninguém em sã consciência pode duvidar qual a função do atual processo promovido pela CBF. Primeiro, tirar de cima de Ricardo Teixeira o holofote das acusações levantadas pelo programa Panorama, da BBC, de corrupção dele e de mais dois dirigentes da Fifa; segundo, a cômoda intenção da entidade de espezinhar inimigos políticos e promover aliados. A tese chapa-branca dos “unificadores” não é frágil. Ela não existe dentro de uma discussão séria.  As comparações feitas com França, Itália e Espanha, que teriam “unificado” seus títulos seguem a mesma lógica que Stalin e Hitler usavam em suas políticas de propaganda – a de adotar como verídicos os fatos históricos convenientes e refutar os inadequados à tese. Retoques em fotografias, adoção de livros como “oficiais”, listas negras de livros e afins.

No Brasil, não existia uma lógica de campeonato nacional como nesses e em outros países por causa das dimensões continentais do Brasil. Os torneios eram disputados segundo sua viabilidade – ou seja, dentro dos estados. Era o Estadual que realmente contava para o brasileiro até a década de 70, a ponto de em determinadas edições do Brasileiro, clubes tradicionais como Corinthians e São Paulo abrirem mão de disputá-lo. A mesma coisa se pode dizer da Libertadores em relação aos times brasileiros na década de 70. Só que os torneios aconteceram. Quem não quis participar, azar. O campeão brasileiro de 1979, o Internacional, venceu o torneio sem São Paulo e Corinthians e os clubes argentinos adquiriram suas supremacias na Libertadores. Nada a contestar.

Diametralmente oposta é a situação da Taça Brasil, que não valia nada em si além da vaga para a Libertadores. Claro, qualquer time que batesse o Santos de Pelé celebraria como se tivesse vencido um título oficial, mas mesmo amistosos entre Santos e Botafogo à época valiam assim tanto. Era outra época, outra competição, outros desafios.  Nem por isso, cada duelo entre Pelé e Garrincha valia um título brasileiro. Em relação ao Robertão, apesar de discordar de considerá-lo um título brasileiro, acho a discussão dentro das raias do razoável. Discordo porque clubes da Bahia, Pernambuco e Paraná, por exemplo, poderiam arguir que não tiveram a chance de disputar – diferentemente do que fizeram São Paulo e Corinthians, por exemplo.

Levar a sério uma discussão que eleva a Taça Brasil á condição de título brasileiro força, dentro da lógica cartesiana, a admitir que os vencedores do Rio São Paulo possam demandar as glórias de papelão de serem “campeões brasileiros”. E se os campeões do sudeste exigem, qual o argumento contra os de campeões da região norte ou nordeste? Ou então o Paysandu, campeão da Copa dos Campeões que o levou à Libertadores em 2003 – uma vez que a lógica do torneio é exatamente a mesma da Taça Brasil?

O santismo xiita de Odir Cunha, idealizador da tese estapafúrdia que equipara alhos e bugalhos é a coisa que menos me incomoda na discussão burra em torno de um assunto tão irrelevante. Para quem não conhece, o doce Odir é uma fonte de simpatia, mas se transforma num dos mártires de Al-Aqsa quando o assunto é Santos. Ele não consegue enxergar um milímetro além da camisa alvinegra do time da Vila. Para ele, a grandeza do Santos é maior do que a de qualquer clube brasileiro ou mundial – inclusos Real Madrid, Milan, Boca Juniors ou todos juntos e somados.

Duas coisas REALMENTE me irritam na discussão. Primeiro, que muito jornalista decente confirma a sua miopia a abrir espaço para o assunto enquanto deixa de lado as acusações de corrupção na CBF, o superfaturamento de estádios  da Copa do Mundo, a ingerência de agentes corruptos e besuntados de dinheiro sujo no financiamento de clubes, a política esportiva patética do Brasil que sediará uma Olimpíada e afins. Isso para não falar dos que fazem isso por intere$$e próprio. Mesmo os decentes estão lesando a sociedade ao deixar de exercer sua função jornalística.

Segundo – e talvez mais importante – é como o status quo do futebol brasileiro se apropria de um patrimônio público – que é o futebol brasileiro – para atender sua sanha corrupta por dinheiro, envolvendo um sem-número de inocentes úteis no processo, sempre assistidos pela corte de comensais vagabundos que não têm competência para escrever uma lauda sem o QI que os mantém, muitas vezes em cargos importantes. Essa mixórdia de voluntários mais ou menos conscientes no processo é o retrato da âncora que impede esse país de avançar velozmente rumo ao futuro. Talvez pareça exagero, mas essa doença é a mesma responsável pelos Complexos do Alemão e pelas Vilas Cruzeiros do Brasil, assim como pelos superfaturamentos de obras, pelos políticos donos de Estados que desapropriam conventos para fazer memoriais em seus nomes e pelos senadores vitalícios cuja eleição nasce na ignorância de quem não tem o que comer.

A luta do Santos por ter o reconhecimento dos títulos em questão é triste. É um desrespeito pelas conquistas do time de Pelé que era, na sua época, sem a menos dúvida, o melhor time do mundo, mas jamais foi campeão brasileiro. A diretoria do Santos está jogando o clube numa vala comum que tem vencedores ocasionais de torneios regionais. E o próprio Odir, que ama o Santos de uma maneira desmedida, está colaborando para isso, provavelmente de modo inocente.

Os livros de história podem ser reescritos momentaneamente, mas revisões constantes devolvem a versão mais próxima da verdade mais cedo ou mais tarde. Eu não acredito na Portuguesa, no Paysandu campeões brasileiros, assim como não acho que o Sport tenha vencido o Brasileiro de 1987 (por mais que a CBF insista em dizer o oposto). Pode ser que tenha gente que discorde e eu até acho lícito discordar. O que eu não engulo são as razões que levam à discordância da discussão como um todo. Acredite na versão da CBF, se você quiser. Nesse caso, aproveite também e creia que Julian Assange está sendo caçado pela Interpol por estupro.

Cassiano Gobbet
Cassiano Gobbet é jornalista, formado pela Universidade de São Paulo e mestre em jornalismo digital pela Bournemouth University.
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