Criticar as vendas dos italianos é comprar o modelo errado

Um time do porte do Milan, quando vende seus dois melhores jogadores, deixa perplexo. Zlatan Ibrahimovic e Thiago Silva eram sem dúvida os melhores atletas do elenco milanista quando seguiram para Paris e deixaram cerca de €170 milhões no cofre do clube de Via Turati. O jornalismo esportivo atual foi uníssono em condenar a venda falando bobagens como “morte do Milan” e “time de segunda”. Trata-se de um exemplo de jornalismo totalmente em sintonia com a atual cepa do jornalismo esportivo: irresponsável, hipócrita, torcedor e recusando-se em se alinhar com a  obviedade por medo de perder o cliente/torcedor. A realidade passa longe. Por melhores que sejam, dentro do futebol italiano, o sueco e o brasileiro não valiam so nenhum ponto de vista a fortuna que movimentaram nas suas transações e deveriam sim ter sido vendidos.

Um fato é irrefutável: a explosão do escândalo de 2006 e mais recentemente da “descoberta” da máfia de apostas que engoliu vários personagem da seleção italiana redimensionou o ‘calcio’. O sistema-futebol na Itália perdeu. segundo estimativas conservadoras, pelo menos 25% de suas receitas, somando-se todas as origens (ingressos, TV, patrocínios, merchandising, etc).

Outro fato também não se pode negar: já em 2006, quase todos os clubes italianos trabalhavam fortemente no vermelho, refinanciando suas dívidas com empréstimos a juros então baixos do confortável mercado europeu ou então contando com dinheiro vindo dos cofres de seus mecenas, como Silvio Berlusconi e Massimo Moratti. Tudo isso mudou.

Um único clube foi forçado a fazer uma parada brusca em 2006 – a Juventus. Perdidas quase todas as estrelas (Ibrahimovic, Cannavaro, Zambrotta, Capello, etc), nos anos seguintes, cortes significativos ocorreram nos custos e, quando retornou à primeira divisão, a Juventus tinha uma saúde financeira legítima – além do financiamento de seus proprietários, a família Agnelli. Agora, além disso, tem tamém uma fonte de recursos exclusiva na Itália: um estádio.

Quando se olha as vendas de Inter e, principalmente, Milan, a crítica óbvia do jornalismo esportivo oportunista é: “não se pode fazer isso com um clube grande”. Mas a realidade é que sim, se pode. Cluhes de futebol podem se dar ao luxo de não vender craques para manter a paixão somente se têm como pagar por ela. Não é o caso dos milaneses. Depois de décadas fechando no vermelho, os dois clubes estão se adequando à realidade financeira que a Uefa começará a impor na temporada que vem. No caso do Milan, ainda pior, Silvio Berlusconi, que sustenta o time há 30 anos para tirar dividendos políticos de sua exposição, sofreu um duro golpe financeiro ao perder um caso na justiça que lhe custou o pagamento de €540 milhões em dinheiro. Sem os três grandes para injetar dinheiro, o sistema-futebol na Itália murcha como um todo. Roma, Lazio, Napoli e qualquer outro não têm nem a força necessária para assumir o posto dos lombardos na economia do esporte.

Daí, vem conclusões óbvias. Apesar de somas ridiculamente altas serem pagas por jogadores hoje, raríssimos são os nomes que têm como justificar um investimento de €20 milhões na contratação, objetivamente falando. Mais do que €30 milhões, talvez só Cristiano Ronaldo e valores acima disso, somente ícones sagrados como Messi, porque nesses casos, o jogador gera mais lucro fora do campo do que nele – e tudo isso, somente em marcas globais como Barcelona e Real Madrid. Mas certamente não é o caso de Thiago Silva (por melhor que ele seja – e é mesmo um dos três melhores defensores do mundo hoje) e também não o de Ibrahimovic com um salário de €18 milhões anuais (valor efetivamente gasto pelo Milan, contando impostos). O futebol está com valores completamente fora da realidade por causa de um conluio incestuoso entre uma mídia sensacionalista, agentes de jogadores que só tiram dinheiro do sistema e um mercado de corrupção e lavagem de dinheiro que gira em torno do esporte.

A alternativa a esse raciocínio prático é a lógica que trouxe Seedorf ao Rio de Janeiro. O holandês, indiscutivelmente um craque (ainda que em decadência física), chega para receber R$700 mil mensais de um clube endividado e que atrasa salários. Um  clube que “ganhou” um estádio público pagando um valor de aluguel que é a centésima parte do valor que um edifício equivalente custaria.Não só do Botafogo, mas de vários outros clubes que estão gastando o dinheiro que ganharão em alguns anos. Todos os grandes contratos do futebol brasileiro hoje estão hipotecando o futuro dos clubes. Se por acaso, acontecer um milagre em que o Estado exija que todo mundo pague suas contas, estes clubes morderão o pó da derrota. Mas, convenhamos, a tradição de “socializar os prejuízos” vem de longe no Brasil, e isso não deve ocorrer com o tipo espúrio de político que temos aqui.

O que sobra de uma lógica que pede a manutenção de jogadores com um custo maior do que o do próprio clube em si é uma deformação social nascida dessa mixórdia mediática confundida com “paixão”. Essa “paixão” só beneficia publicações populistas, anunciantes, agentes e marqueteiros, além de meia dúzia de jogadores. O custo, quem paga é ou o Estado (caso do Brasil) ou a instituição (no caso de países mais sérios).

Tecnicamente, é claro que o futebol italiano se ressentirá. Não são só Ibra e Thiago. Maicon deve deixar a Inter, assim como Júlio César também é uma despesa incômoda, assim como Sneijder. Não foram vendidos até agora porque não há compradores (exceção no caso de Maicon) dispostos a arcar com as exigências dos atletas e agentes. O momento italiano é de pagar pelos excessos de uma década atrás, mas o mundo não acabará. Pode levar tempo, mas as contas se acertam. Nesta temporada, o Milan só vence o campeonato com um milagre ou com um jogo coletivo extraordinário, quase épico, mas entrará na temporada que vem com as contas em dia e com menos pendengas de crédito na praça. O fenômeno da gastança frenética, em breve, fará vítimas em outros países e é justo que faça, se as sociedades como um  todo estão com a corda no pescoço. O torneio será mais pobre e mais equilibrado, com a Juventus bem à frente dos demais.

Aos arautos do apocalipse milanista, porta-vozes egoístas e demagogos do desejo da multidão, que querem negar o inegável em nome de uma “paixão” que mudará de cor assim que as vendas julgarem necessário, sugiro um pouco mais de leitura sobre economia, mercado financeiro (especialmente de crédito), legislação esportiva e cidadania. Sim, há instituições que podem gastar somas insanas de dinheiro em jogadores porque construíram marcas globais que legitimam essas despesas. A grande maioria, contudo, não pode. E exigir gastos de quem não pode não é só errado. É imoral. Coisa de quem acha que pagar dívida é coisa de trouxa. Compreensivelmente, um raciocínio infelizmente arraigado em alguns lugares.

Cassiano Gobbet
Cassiano Gobbet é jornalista, formado pela Universidade de São Paulo e mestre em jornalismo digital pela Bournemouth University.
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