Discussão “racista” na França é oportunista, mas útil

Há duas semanas, o vazamento do conteúdo de uma reunião na federação francesa em que se discutia a adoção de cotas raciais para jogadores nas divisões de base despertou uma tempestade em que o técnico da seleção francesa, Laurent Blanc, foi acusado de racismo por sugerir que se deveria proteger os espaços para brancos na seleção. Blanc foi pego numa discussão que interessa a políticos e dirigentes de futebol, fato pelo qual certamente ele apanhará injustamente. Contudo, o debate poderia ser útil se avaliado por gente séria – infelizmente uma probabilidade pequena.

Ao contrário do que se quis fazer crer, Blanc estava expondo um ponto de vista absolutamente pertinente: por absorver jogadores oriundos de suas colônias, as categorias de base dos clubes franceses dão preferência a jogadores fortes e rápidos, compleição física na qual os jovens negros desenvolvem mais rapidamente. O próprio Muricy Ramalho, quando no São Paulo, já tinha reclamado de problema similar: o treinador da divisão de base, para manter seu emprego, prefere aqueles mais fortes na adolescência, pois esses a vantagem física é decisiva nesse nível. Quando o estágio de crescimento é encerrado, no entanto, o menino que cresceu antes pode se revelar limitado tecnicamente. Contudo, a antiga promessa hábil não se beneficia, porque já tinha sido largado no meio do caminho. Daí, a dificuldade de se fazer a transição para o time de cima. Daí também a falta de inteligência em se achar que todos os meninos que explodem nas divisões de base virão a ser craques.

O argumento de Blanc foi o seguinte: em vez de se privilegiar os mais fortes e somente os mais fortes, a federação deveria estipular que as categorias de base não olhassem para os resultados imediatos, mas visasse o longo prazo, no qual são necessários jogadores fortes sim, mas também jogadores ágeis, hábeis tecnicamente, com biotipos mais leves e mais eficientes em critérios diferentes – mas não menos importantes – do que a força física. Ou seja: em vez de só os mais fortes, abrir espaços para meninos com habilidades diversas e aguardar que eles se desenvolvessem.

Segundo o vazamento da reunião, Blanc atentou também para o fato de se irritar com o fato de jogadores que crescem representando a França não terem identidade com a seleção e cultura francesas e que ficava incomodado de meninos que defendem o país nas seleções de base vão defender seleções dos países de seus ancestrais quando adultos. O problema aí é em parte francês – cabe à França resolver as conseqüências de um passado colonial explorador e cruel, dando aos cidadãos que ela “roubou” de outros países as mesmas condições de cidadania (que se revertem ou não no vínculo com o país), algo que ela não faz hoje. Mas também é causado pela falta de responsabilidade da Fifa.

Isso ocorre por causa da fragilidade na legislação que permite que jogadores “troquem” de país se isso for interessante. O coerente seria que um menino que defendeu uma seleção na adolescência ficasse ligado a essa seleção para sempre. O fato faria com que as federações locais tivessem de ter algum cuidado com a gestão de suas seleções de base e desenvolvimento de jovens jogadores, algo que, por exemplo a CBF não faz, mantendo treinadores ridículos em seus quadros, com convocações repletas de ingerências de empresários e com contato zero com o trabalho feito nos clubes. No caso da França, faria com que a FFF fosse obrigada a escolher entre uma representação legítima de seu país ou em continuar roubando o talento de suas ex-colônias, num processo de clara chupinhação pós-colonialista.

Blanc teve o azar de dar tais declarações num momento em que o país começa a se preparar para uma corrida presidencial e na França, a questão racial – contra e a favor – decide votos. Sim, ele tem razão em dizer que a França só tem gerado jogadores com biotipo de Patrick Vieira por conta da dinâmica das divisões de base, onde os meninos mais robustos têm preferência, mas como há toda uma sensibilidade ao redor do tema, só abordar o problema às claras ganha conotação de racismo, uma vez que no país, negros e descendentes de árabes são mesmo cidadãos de segunda classe em muitos aspectos.

A discussão e acusações de “racismo” são geradas por oportunismo porque foram adotadas por políticos que se fortalecem em questões relacionadas à xenofobia – contra ou a afavor. Contudo, se a França parasse para rediscutir as condições oferecidas aos franceses – independentemente de sua raça, o debate passaria a ser muito útil, inclusive se enterrasse o ranço que forma um preconceito às avessas – o mesmo tipo de raciocínio burro que criou a política de cotas nas universidades brasileiras. Melhor ainda, seria se chamasse a Fifa a ter uma postura menos hipócrita e movida por interesses políticos e econômicos, ditando regras claras para as convocações. Infelizmente, ambas discussões teriam de ser feitas por políticos e, como sabemos, esperar algo decente de políticos é como aguardar a volta de D. Sebastião.

Cassiano Gobbet
Cassiano Gobbet é jornalista, formado pela Universidade de São Paulo e mestre em jornalismo digital pela Bournemouth University.
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