Barcelona não trucidou somente o Santos

O Santos estendido ao chão no Nou Camp é um time medíocre. Se era preciso uma prova, o saco dado pelo Barcelona deve ter servido, sendo que metade da surra foi dada pelo Barcelona “B” (Pinto; Montoya, Bartra, Bagnack e Adriano; Song, Sergi e Fábregas; Neymar, Dani Nieto e Dongou). A mídia mostrou-se estupefata e os rivais aproveitaram para celebrar, mas não deviam. Corinthians, Cruzeiro, Botafogo e outros “grandes” não têm times muito menos medíocres. A combinação de uma audiência acostumada a pão e circo e uma mídia esquecida de sua obrigação de informar, mais que entreter, levaram ao choque catalão. Os 8 a 0 chocaram, mas não deviam. Nosso futebol indigente é ruim e vai piorar. E não, o “seu” time não é muito melhor que o Santos.

Qual a real distância entre nosso futebol e outros? isso jamais será definido. Partidas “secas” como as decisões do Mundial Interclubes não são provas concretas. A Coreia do Norte já derrotou a Itália; um time amador já bateu a Inglaterra; Adriano Gabiru superou Samuel Eto’o. O futebol tem um elemento ‘socialista’ porque a soma dos indivíduos quase nunca equivale ao que o time rende. Jogadores limitados podem ter um futebol assombroso quando bem inseridos (basta pensar que o menos-que-medíocre Edcarlos já foi campeão mundial) e craques incontestáveis podem colecionar durante a carreira muito menos troféus do que mereciam (Ronaldo Nazário e Maradona, só para citar dois).bozo1-031212

Embora a medida científica do futebol não seja possível, há indicadores que deveriam margear essa avaliação, mas eles são sistematicamente esquecidos, por conta de uma combinação de ignorância, despreparo, orientação mercadológica, falta de coragem e demagogia pura e simples. O Brasil não contrata jogadores de ponta de clubes europeus. Os poucos salários brasileiros que se equiparam a alguns europeus (como o do tricolor Fred, supostamente de um milhão de reais mensais, o do já citado “Sheik”,  Valdivia e companhia) são dados a jogadores que não conseguiriam as mesmas somas na Europa e que não jogariam em times de ponta; os clubes brasileiros que mais faturam, como Flamengo e Corinthians, se endividam numa proporção ainda maior; não há um treinador brasileiro bem-sucedido na Europa desde Carlos Alberto Silva no Porto, há 20 anos; não há, na América do Sul, uma entidade que forneça treinamento e aperfeiçoamento a esses treinadores…a lista segue com muitos outros detalhes. Mas ela é ignorada.

Um comentário na partida entre Criciúma e Corinthians me chamou a atenção sobre o quanto o ‘establishment’ mediático brasileiro se esforça para elogiar o inelogiável. Num dado momento, o meia Danilo, um jogador tão esforçado quanto limitado, pegava na bola com dificuldade e sua falta de forma física era visível em sua silhueta. Tamanha lentidão levou Cleber Machado e Casagrande a elogiarem como ele conseguia “jogar bem” mesmo sendo lento. “É um lento dinâmico”, brincou Casagrande, mas havia um fundo de verdade na sua tentativa de elogiar o meia.

O grupo de “craques” do Brasileiro que recebem os elogios da mídia não acabam em Danilo nem no Corinthians. Basta pensar em praticamente qualquer jogador do Internacional, seguidamente apontado pela mídia (especialmente pela local) como “o melhor elenco do país”. O recém-laureado Atlético-MG tem uma promessa que pode ter uma brilhante carreira internacional (mas ainda não tem cem jogos oficiais), Bernard, um ex-craque que, no Milan, não conseguia competir nem com a segunda linha do time – além de uma grande gama de refugos cuja carreira internacional é uma plêiade de fracassos. Refugos esses que se sagraram campeões sulamericanos, algo que diz muito sobre o nível da concorrência.

Da síndrome de vira-lata abordada por Nelson Rodrigues à arrogância provinciana que o futebol brasileiro  – e sua mídia – têm hoje foi um longo caminho – pelo menos 55 anos e cinco títulos mundiais, mas o fenômeno aparentemente se reverteu completamente. A mídia que conta – diga-se, a que tem reverberação nacional e que consegue direitos de transmissão de ao menos uma competição importante – não ousa desagradar o cliente – que é o leitor, internauta e espectador. Doutrinados por J. Hawilla e outros papas do marketing esportivo, tomou-se como verdade que não se pode depreciar o próprio produto e então, quem se importa se Danilo está gordo como um barril, ou se Ronaldinho Gaúcho é tão decisivo quanto o desconhecido meia de um dos quinze “quero-ser-grande”‘s do Brasileirão? Nada importa – somente fingir que está tudo bem.

O único empecilho para o marketing mediático e seu comercial que vende shows de bola e fornece Desafio ao Galo são as pequenas injeções de realidade que cacetes como os de sexta proporcionam. Robinho foi para a Europa endeusado e provou-se um vigoroso fracasso bilionário, que, naturalmente, sempre encontrou trouxas dispostos a financiar.  Contudo, nossos “craques” agora encontram trouxas ricos também por aqui, capazes de pagar salários de meio milhão por mês por um atacante de 34 anos da seleção do Qatar, de quase isso por zagueiros “vigorosos” com o bom senso de um motoboy desgovernado ou por ex-jogadores em atividade, como ambos Ronaldos e o finado Adriano (talvez o caso mais triste de óbito futebolístico recente).

Torcedores raramente vêem o próprio time com racionalidade e só são chamados à realidade em pancadas violentas como a que aconteceu com o Santos, o que normalmente é bastante doloroso (basta ver o post do colega santista de quatro costados Odir Cunha e dos comentários sobre a chacina da Catalunha) e, às vezes, coloca em xeque até administrações aparentemente mais bem intencionadas do que a média (como a do Santos, em que pese a  ilusão vivida com Neymar). Mas a desculpa vale apenas para a torcida. O amadorismo do nosso futebol o prejudica desde sua gerência até sua cobertura jornalística. O grande problema é que boa parte dos envolvidos fatura alto com isso – de cartolas corruptos a agentes que conseguem empurrar trambolhos a peso de outro e jornalistas que se vendem e são manipulados vigorosamente pelas suas fontes). Nenhum caminho possível para o futebol brasileiro será tomado antes dos clubes brasileiros, torcida e mídia redimensionarem expectativas de acordo com nossas limitações. Enquanto isso não acontece, comemos mortadela a preço de caviar, pagando juros de cheque especial para moluscos futebolísticos e o saldo da dívida vai crescendo até o momento em que algum cartola seja desavergonhado o suficiente para sugerir que o governo assuma dívidas – algo que certamente vai acontecer com o festim de estádios da Copa. Esse será o momento em que a surra do Nou Camp chegará a todos nós, com os cumprimentos de um monte de gente. Não seria a primeira vez.

Cassiano Gobbet
Cassiano Gobbet é jornalista, formado pela Universidade de São Paulo e mestre em jornalismo digital pela Bournemouth University.
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