Legado de Guardiola ameaça o futebol moderno e seu profissionalismo amador

Pep Guardiola anuncia que deixa o Barcelona e o futebol (momentaneamente). Entre lamentos do mundo e festejos aliviados de uma Madri que não suportava mais ser humilhada (não obstante a vitória no clasico), o técnico diz que cedeu ao estresse, à pressão exigida por um time que a exemplo do Ajax de Rinus Michels e do Milan de Arrigo Sacchi, reinventou o esporte ao mostrar como se trata muito mais de uma questão mental, incutida no jogador desde as divisões de base do que gastos astronômicos ou taticismos. Gianni Mura, colunista do diário italiano La Repubblica, aconselha Pep: “Por favor, Pep, não venha para a Itália. Aqui, você corre o risco de se arruinar”. No clássico kitsch da RAI, o La Giostra Dei Gol, um treinador desempregado convidado como comentarista, concorda. “O esquema do Barcelona não é viável. Trata-se de um ciclo encerrado”.

AUGUST 19, 2009 - Football : Manager Josep Gua...

Fast Forward para o filme Moneyball, estrelado por Brad Pitt. No filme, Pitt vive Billy Beane, o gerente geral do Oakland Athletics, um time pequeno na Major League Baseball que decide, depois de inúmeros fracassos, tentar uma nova abordagem para contratar jogadores depois de perder seus três melhores jogadores para franquias maiores. Beane decide aplicar as teorias de um economista chamado Bill James, segundo as quais, o desempenho no beisebol está diretamente ligado às estatísticas, mesmo que isso raramente seja visto por comentaristas, “especialistas” e torcida. O resumo da ópera é que Beane aposta em jogadores dados como fracassados por causa de estatísticas específicas e, depois de ser massacrado pelos “especialistas”,  leva o Oakland a fazer a maior sequência de vitórias da história da MLB.

O que têm a ver Guardiola, Mura, um treinador desempregado fazendo bico na RAI como comentarista (só por curiosidade, se chama Mario Somma) e Billy Beane e os sabermetrics de Bill James? Primeiro que, Mura está corretíssimo em apostar que Guardiola tem mais a perder do que a ganhar indo para a Itália – e a razão é exatamente o amadorismo, despreparo e “achismo” que envolvem o mundo dos esportes que quase levaram Billy Beane a perder o emprego. Na Itália, além do descrédito e desconfiança generalizada que enterraram o calcio na lama com o escândalo juventino de 2006, a exemplo do Brasil (e de outros países, em menor ou maior escala), os clubes estão longe de um profissionalismo objetivo na gestão, sendo entregues a ex-jogadores que já tinham raciocínio e horizontes curtos quando ainda jogavam, com a “crítica especializada” seguindo o mesmo padrão, repleta de opinionistas que tem pouco ou nada a dar além de suas opiniões, “endossadas” por um diploma conseguido numa subfaculdade – pouco a mais do que você conseguiria indo até o bar mais próximo de sua casa e batendo um papo com alguém no balcão.

O esporte é supostamente profissional apenas para explicar por que os dirigentes de  um determinado clube vendem o maior ídolo da torcida em função de uma bolada de dinheiro e eventualmente, em campos específicos (como preparação física em alguns clubes ou gerenciamento de direitos em outros). No mais, um grande festival de preconceitos mesozoicos serve como base para o esporte em geral ser uma grande ama de leite para ignorantes, sanguessugas e rêmoras em geral, que certamente explica o porquê do seu clube ter contratado aquele atacante absolutamente incompetente que recebe um salário mensal equivalente a três ou quatro anos do seu trabalho árduo.

Guardiola, de fato, só tem a perder na Itália porque o futebol italiano está metastizado com uma doença que inclui a corrupção de uma oligarquia ultrapassada que se recusa a sair do poder (e que se reflete no país como um todo, vide Silvio Berlusconi), o domínio de um grupo de interesses que nada tem a ver com o esporte, uma imprensa decadente que está sendo devorada viva pela revolução digital e apela cada vez mais para o entretenimento do que para a informação e uma torcida que vive um fenômeno de violência-frustração similar ao que acometia os hooligans barbarizados pelo thatcherismo dos anos 80. Guardiola tem grandes chances de insucesso na península porque não se daria a ele os recursos nem o tempo para ele dar certo, propositadamente. O trabalho dele no Barça (e do Barça pré-Rosell), Messi à parte (porque se trata de um fenômeno que ocorre uma vez por século) mostra que no futebol, é possível fazer grandes times sem ter de queimar dinheiro em contratações que só servem para povoar contas de agentes de dirigentes corruptos em paraísos fiscais.

Mais do que o refinamento técnico ensinado na Masía barcelonista, Guardiola mostrou que o futebol é uma questão de filosofia e preparação mental. Assim como Billy Beane provou que era possível contratar jogadores por 5% do valor de mercado porque esses jogadores tinham rendimentos excelentes nas estatísticas que eram importantes, Pep levou para o time do Barça jogadores que nenhum outro técnico levaria, como Pedro, Busquets e até o próprio Xavi (que não foi ele que levou, mas, lembremos, jogava como pivote, ou cabeça de área, no início de carreira, e foi realocado definitivamente para uma posição mais avançada por Guardiola). Enquanto isso, jogadores  medíocres como Thiago Neves, Yaya Touré e outros, participam de transferências milionárias graças à ignorância conveniente instalada no futebol (e no beisebol, como mostrou Billy Beane) para movimentar um sistema que funciona desde que não haja ameaças que as provem falaciosas – algo que a filosofia barcelonista certamente faz.

É bem verdade que um time exatamente como o Barcelona dificilmente seria feito em outro lugar, mas é igualmente certo que times muito melhores poderiam ser feitos empregando-se apenas tempo, competência, suor e a abordagem correta, uma que 90% dos treinadores no mundo (dos quais, quase nenhum teve algum tipo de preparo além de ter sido jogador) nunca irão compreender. Exatamente como o semidesconhecido analfabeto (futebolisticamente) treinador fazendo um bico na RAI provou, ao dizer que o modelo é “inviável”. Apostar em divisões de base ainda é o modo mais barato de se montar grandes times, ainda que, graças à conivência da Fifa, as bases sejam vítimas das viroses mortais conhecidas por agentes de jogadores.

O triste da história é que, sem Guardiola, não tenho certeza que esse Barcelona vá continuar a ser o espetáculo fantástico que foi nos últimos três anos. Não é certo que seu sucessor Tito Vilanova vá fracassar (o Ajax foi campeão europeu depois da saída de Rinus Michels, por exemplo), mas num ambiente dominado por um mercador como Sandro Rosell e suas conexões, a chance de a maionese desandar é grande – tudo vai depender de como o grupo vai se autogerenciar e aceitar a chegada de outro comandante (que conhece a maioria dos jogadores desde a base – era técnico de Messi quando este ainda tinha 14 anos). Quanto à Guardiola, certamente ele terá dificuldade de poder refazer o projeto que tinha na Catalunha. E a Itália, ao menos enquanto o atual quadro de decadência socioeconômica perdurar, terá de aceitar como expoentes os talentos de Antonio Conte e Max Allegri. E mesmo eles, terão de se adaptar às limitações impostas pelo seu entorno. Triste, bem triste…

Cassiano Gobbet
Cassiano Gobbet é jornalista, formado pela Universidade de São Paulo e mestre em jornalismo digital pela Bournemouth University.
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