O fim oficial da inocência

No minuto seguinte àquele no qual o futebol ficou profissional, a inocência do esporte já havia começado a morrer. Jogar pela camisa ou pela torcida são discursos que só funcionam para a mídia. Há tempos que o futebol é dominado pelo dinheiro e a onipotência dos Barcelonas, Bayerns e afins é a prova de que sem dinheiro não se vai a lugar nenhum. Contudo, a incapacidade do Chelsea de vencer a LC e o fracasso do Manchester City na Premier League, apesar dos gastos obscenos, mantinham em pé a máxima de que para se vencer no futebol não basta dinheiro. Depois da semana passada, isso acabou. Qualquer imbecil bem assessorado que possa torrar cerca de £1 bilhão, pode ser campeão inglês e com cerca de €3 bilhões, uma Liga dos Campeões pode virar troféu de mafioso russo.

Reiterando: claro que o futebol perdeu sua inocência há tempos e que clubes como Milan e  Real Madrid já provavam que o dinheiro – muito dinheiro –  é a essência do futebol moderno. Jingles e slogans emocionais da Uefa para promover a Liga dos Campeões e edições mtvísticas de imagens da Premier League, temperadas com um jornalismo esportivo que é uma mistura de jornalismo e assessoria de imprensa não mudam o fato de que havia um esporte soterrado embaixo de toda essa massa financeira que criava jogos emocionantes, partidas inesquecíveis e tudo mais. Mas agora, há uma etiqueta de preço.

Ao contrário de tudo o que se disse nos últimos dez dias, eu não vi graça alguma em o Manchester City, um clube de interior cuja alma é restrita à  parte de Manchester se sagrar campeão inglês com um time montado graças a uma folha salarial absolutamente insana (cerca de €170 milhões anuais) e que inflacionou o mercado de jogadores e salários de maneira exponencial mesmo durante a pior crise econômica no continente desde a II Guerra Mundial. Também, apesar da partida emocionante, vi com tristeza a vitória do aguerrido Chelsea, que nos oito anos da gestão de Roman Abramovich, não teve um prejuízo anual menor do que €70 milhões. Torci muito para que o primeiro londrino a vencer a LC fosse o Arsenal, um clube de verdade que se transformou em negócio mas não deixou de ter essência. City e Chelsea “alugaram” essa essência com dinheiro de origem duvidosa. É como o Carnaval do Rio que é uma festa genuína, mas que só ganhou a grandeza global que tem hoje sendo bancado por bicheiros e traficantes, com total aceitação da sociedade.

Nem mesmo a tese da “financialização” do futebol poderia explicar a escalada financeira. Como dizem os autores Simon Kuper e Stefan Szymanski, se o futebol fosse um negócio, seria um mau negócio. A grande maioria dos clubes geridos por milionários inconsequentes dão prejuízos. O City sozinho fechou o último ano com  um déficit recorde de R$620 milhões e outros grandes clubes do continente, mesmo aqueles que existem de fato (e não foram inflados como Chelsea, City, Málaga e PSG), foram arrastados para o vórtice de gastos ensandecidos. Não é possível competir na Europa sem gastar quantias absurdas. E nada indica que a legislação da Uefa para o fair play financeiro vá trazer algum resultado, porque os clubes estão se preparando para maquiar injeções de dinheiro ilegais através de contratos de patrocínio anabolizados.

Tudo que li nos últimos dias falava das congratulações ao City, à devoção de sua torcida e a como o Chelsea “batalhou ” pelo título da Liga dos Campeões. Não nego que, em campo, o Chelsea deste ano fez por merecer o título. Jogar feio não é crime e cabe aos times mais talentosos como Barcelona, Real Madrid e Bayern, encontrarem maneiras de superar a retranca de Roberto Di Matteo (que é suíço de nascimento, país que deu origem à primeira retranca na história da tática – só citando uma coincidência aqui). Também é inegável que o City fez mais pontos que a concorrência, apesar de ter um treinador medíocre. Mas a construção dos dois times foi a contratação dos jogadores mais falados e só. Caso Abramovich ou Mansour al Zayed deixassem Chelsea e City, suas “torcidas” se desmanchariam em alguns poucos anos.

O que estou abordando aqui não é uma questão de torcida, nem de preferência. Trata-se do fechamento de um ciclo que se iniciou nos anos 80, com a chegada de Silvio Berlusconi ao Milan, onde o político percebeu que podia comprar visibilidade financiando um grande clube. Com a chegada ao topo de dois clubes historicamente medíocres unica e exclusivamente através do maxifinanciamento com fundos vindo de fontes mais que duvidosas, o ciclo se consolida e o esporte deu lugar a uma lavanderia pública de dinheiro, onde os prejuízos são aceitos e até esperados, uma vez que não é preciso haver equilíbrio financeiro. Não é à toa que mesmo com a Europa em crise profunda e os clubes do continente devendo cerca de €7 bilhões (quase 60% só na Premier League), só em 2011-2012 os agentes de jogadores tenham faturado mais de €3 bilhões em comissões. Quando se pensa nesse faturamento de uma categoria que não faz absolutamente pelo sistema como um todo, é possível vislumbrar a lavanderia de dinheiro que se tornou o esporte. Ainda nos emocionamos e ainda temos joias raras como Cristiano Ronaldo e Rooney e artistas míticos como Messi, mas o futebol como conhecíamos não é mais o mesmo, enquanto tiver mais e mais Berlusconis, Abramovichs e al Zayeds. Eles são o sintoma futebolístico de uma doença do nosso tempo,

Cassiano Gobbet
Cassiano Gobbet é jornalista, formado pela Universidade de São Paulo e mestre em jornalismo digital pela Bournemouth University.
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