Guerra sem vencedores

A corrupção é um câncer cuja taxa de remissão é de 100%. Ela nunca vai embora. Passados quase seis anos do escândalo de Calciopoli, um novo relatório de acusação organizado por um procurador de Napoli levou à lama o único clube que se dizia inocente no maior escândalo de corrupção da história do futebol italiano (e olhe que não são poucos). Nas 72 páginas do relatório de Mario Palazzi, a Inter aproveitou-se do tráfico de influências para conseguir vantagens em campo. E agora?

Agora, a conclusão é óbvia e triste. Óbvia, porque somente alguém muito ingênuo poderia imaginar que um megabilionário como Massimo Moratti se visse em meio a uma grerra política de bastidores como a arquitetada por Luciano Moggi e ficasse de braços cruzados fazendo beicinho. Segundo Palazzi, Giacinto Facchetti, ex-lateral mítico da Inter de Helenio Herrera e braço-direito de Moratti, agia impiedosamente nos bastidores para assegurar arbitragens “compreensivas” com a Inter. As suas conclusões são tão irrefutáveis quanto as que mostraram que Luciano Moggi mandava e desmandava em contratações e arbitragens até 2006. A posição de Palazzi é triste porque agora também oficialmente se sabe que não há pilares morais no futebol italiano em cima dos quais se possa reconstruir o mesmo.

Há uma diferenciação básica entre o que fazia Faccetti e o que fazia Moggi. O ex-defensor mantinha um relacionamento inadequado com os árbitros, colocando-os sob sua esfera de poder para garantir que a Inter tivesse os árbitros que queria. Não houve nenhum indício de que ele tivesse vantagens pessoais do caso – que é exatamente o que fazia Moggi, cuja atuação era mais extensa. O ex-cartola juventino assegurava contratações de jogadores, convocações para a seleção e resultados de partidas de outros clubes que lhe conviessem. Há uma segunda diferenciação necessária: Facchetti, apesar de claramente envolvido com o aliciamento de árbitros, não montou o esquema para si. O aparelhamento da corrupção do futebol italiano veio pelas mãos de Luciano Moggi. A Inter, Moratti e Facchetti assumiram seus papeis de protagonistas, assim como o fizeram os dirigentes de outros clubes, como ficou claro nas acusações de 2006 e de agora.

O relevante de Calciopoli II, como está sendo chamado o episódio, é o desmascaramento definitivo do papel interista, que desde sempre havia se declarado vítima no processo. Moratti e Facchetti tinham nos bastidores o mesmo papel corrupto que tinha Moggi. Numa das primeiras entrevistas de Adriano Galliani em 2006, logo após a explosão do escândalo, ele disse que “tudo o que o Milan fazia era tentar conter o poder dos rivais”. Provavelmente sob indicação de advogados, ele nunca mais deu uma declaração do gênero, mas é uma clara assunção de culpa (e razão pela qual eu, à época, achava que deveria ter culminado no rebaixamento do Milan). O papel da Inter e de outros clubes, era exatamente igual.

Assim como em 2006, as vozes dos que dizem que tudo é um absurdo e que as acusações são infundadas. Massimo Moratti ficou quase apoplético ao responder sobre a acusação de Palazzi em relação ao seu amigo Facchetti, chegando a acusar a Gazzetta Dello Sport de estar apoiando a Juventus; o ministro (interista) La Russa diz que trata-se de uma vingança de Palazzi contra Facchetti (sem explicar exatamente por que);  Sandro Mazzolla pede de volta o scudetto de 1998 (vencido pela Juventus com uma arbitragem escandalosa do juiz De Sanctis). O triste fica mais triste com a quantidade de defesas panfletárias e sem que ninguém pense em exigir uma justiça geral com punições draconianas a todos. Na verdade – vejam só – o papel de pedir essa justiça fica com a Juventus, até porque o clube piemontês foi o único a ser realmente punido de alguma forma.

Discute-se também o destino do título de 2006, vencido pela Juventus no campo e dado à Inter no calor da apuração de Calciopoli. Uma decisão estúpida, uma vez que claramente o campeonato não tinha sido vencido por ninguém. Agora, o problema passa a ser que por estarem prescritos os prazos, não é possível tirar o título da Inter e o clube nerazzurro pode ter a vergonha de ser o único clube do mundo com um título contestado pela própria federação.

Nos anos seguintes ao escândalo, jamais deixei de indicar que a suposta inocência interista era quase tola, porque ninguém sobrevive sozinho num mundo corrupto sem se corromper – ou deixa esse mundo, ou é subjugado por ele, ou se corrompe. Contudo, a pá de cal final sobre a ilusão de que havia alguém menos envolvido é mais uma colher de fel. O futebol italiano está rigorosamente sem luz no fim do túnel porque a sociedade não se mobiliza para fazer algo como a lendária “Operação Mãos Limpas”. Aparentemente, a sociedade italiana não sente a necessidade de exigir justiça. E isso é o sintoma de uma doença que está longe de ser curada.

Cassiano Gobbet
Cassiano Gobbet é jornalista, formado pela Universidade de São Paulo e mestre em jornalismo digital pela Bournemouth University.
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