Analisando um evento celestial

Assim que o jogo acabou, fiquei pensando no que dizer e sentei no computador pronto para fazer uma ode de amor ao esporte. Mas refreei meu impulso. Exercitei a paciência para deixar este texto sair alguns dias depois, tentando diminuir o impacto de uma das maiores exibições de um time de futebol na história na minha percepção. E, claro, tentando escapar do lugar-comum que foi elogiar AQUELE jogo nas 24 horas subsequentes.

Começarei como espírito de porco: não, este Barcelona não é o maior time de todos os tempos. Não é. Primeiro,E enquanto Michelangelo pincelava o gesso na Capela Sistina..."
porque não existe tal posição (o cidadão pode até achar que tal time foi o maior de todos os tempos, mas uma escolha objetiva não é possível), e segundo, porque há outros times sublimes na história – como o Ajax de Rinus Michels, o Milan de Sacchi, o Santos de Pelé, o Bayern de Beckenbauer. Este certamente é um grande, grandíssimo time – a ponto de se misturar a um desses. No mais, hipérboles consagradoras que insistam em provar por A+B que este é o maior de todos são masturbação técnico-jornalística de quem quer dizer que vivenciou o momento mais intenso da história (como aquele jornalista com dois anos de experiência que vaticina que o último disco dos Fluvvers é o maior álbum de rock da história). Coisa de babaca.

As restrições acabam por aí. Este Barcelona não joga mais futebol. É arte em estado puro. Parafraseando Nelson Rodrigues, Lionel Messi se acotovelou com Isaac Newton e Michelangelo num sofá existente no Olimpo da perfeição e disse, “colega, pode dar uma chegada para lá?” – assim como, em outras épocas, fizeram Cruyff, van Basten, Pelé e outros. É essa a extensão da grandeza da vitória do Barcelona sobre o Manchester United.

A consagração de se vencer uma Liga dos Campeões é raríssima, assim como a de um espetáculo de gala. A sua combinação é quase um fenômeno cósmico, daqueles que ocorrem meia dúzia de vezes na história de um universo qualquer. O Manchester, um tremendo Manchester, parecia um time de pub de Yorkshire. A supremacia do Barça iniciou com um apito e terminou com três. Mesmo com o gol de empate de Rooney, os catalães não piscaram. Me lembrou a atitude que dizem que teve Didi ao sofrer o primeiro gol sueco, anotado por Liedholm, na final da Copa de 1958. “Não tem problema, vamos fazer os nossos”, teria dito o Príncipe Etíope. Esse tipo de certeza é o momento mais alto de um esportista.

É difícil enxergar a maior virtude do Barcelona. Com quase 700 passes por jogo, o Barça imobiliza qualquer adversário; a movimentação de seis, sete jogadores em cada jogada ofensiva, é um sintoma da herança genética do totalvoetbal de Rinus Michels; sua defesa é tão consistente que o jogador da sobra parece ser o que dá o primeiro combate…Tudo isso e ainda uma quantidade industrial de talento vindo de todos os lados do campo.

Nessa final, o Manchester tinha uma chance de vencer: tirar a posse de bola do Barça. Deixar o time do Camp Nou ditar o ritmo do jogo é como entregar o revólver carregado ao inimigo. Conforme os medidores estatísticos da Uefa acusavam o crescimento da posse barcelonista, por volta dos 15min do primeiro tempo, lavrava-se a certidão de óbito do United. “Esse é o time mais forte que já enfrentei na minha carreira”, conformou-se um Alex Ferguson em versão extremamente desportiva. É como o zagueiro italiano Rosato, que depois de ter tido a tarefa de marcar Pelé na final da Copa de 70, correu para arrancar sua camisa. “Perdi o jogo, mas fiz parte da história”, disse o ex-milanista, lembrando-se do episódio, meses antes de morrer em 2010. Não havia nada a fazer e tanto Ferguson como Rosato sabiam disso.

Normalmente, o sucesso de um time num torneio importante serve como diretriz para os demais. Assim, não haveria possibilidade melhor de tendência do que uma ditada por este Barcelona: técnica, tática, liberdade disciplinada, determinação com descontração. É um time de nível máximo de refinamento. Talvez aí esteja o único setback desse nosso sonho. Esse é um time genial e gênios não aparecem assim, sem mais nem menos. Vamos aproveitar porque um time como esse aparece a cada duas, três décadas. E olhe lá.

Cassiano Gobbet
Cassiano Gobbet é jornalista, formado pela Universidade de São Paulo e mestre em jornalismo digital pela Bournemouth University.
Top