O país da tiririca

Teoricamente, os anos 90 liquidaram o passe e a Lei do Passe, algo que o ex-jogador Arturzinho já tinha denunciado nso anos 70 como escravidão. Depois de Bosman e da Lei Pelé, os atletas só poderiam passar a ficar presos aos clubes por vínculos contratuais cujos valores seriam definidos pelas próprias cifras movimentadas. Note-se que eu disse “clubes”, porque em várias instâncias, entre as quais, a da Fifa, sómente clubes podem assumir compromissos com jogadores – e mesmo esses não devem se constituir em “passe”. Ainda assim, o “passe” voltou às manchetes, numa clara demonstração de como este é ainda, em vários aspectos, um país sem lei.

Kia Joorabchian, o dono da MSI e principal artífice do rombo que rebaixou o Corinthians, está de volta ao futebol brasileiro com força total. Ele teria repatriado Robinho, levado Oscar do São Paulo para o Inter, estaria por trás da tentativa de levar Neymar ao Chelsea, está ligado à construção do estádio corintiano e entre outras coisas, é o homem por trás da manobra para se levar o atacante Moysés do Paysandu ao Santos por intermédio de seu sócio Gustavo Arribas, que como diz a notícia da Folha, comprou o “passe” de Moysés junto ao Paysandu e o levou ao Santos.

Como é possível uma coisa que não existe mais ser comprada? Mais: essa coisa, mesmo quando existia, já não podia ser comprada por entidades não-esportivas (razão pela qual o megacapo dos empresários, Juan Figer, tem um clube-fantoche no Uruguai, o Rentistas, que é na verdade um curral de atletas)? E como é que ninguém faz nada? Ninguém questiona na mídia as irregularidades, nenhuma entidade esportiva questiona os fatos. Nada. Vivemos num país em que a ilegalidade sempre campeia, cresce como se fosse tiririca (qualquer coincidência não é coincidência). Temos um presidente que gostaria de fechar jornais, que é amigo de Chávez (uma excrescência pseudodemocrática latina), uma confederação de futebol que manipula governantes, promotores e delegados que mostram suas estrelas para aparecer na TV e depois desaparecem com mandatos de deputado estadual. Como dizia De Gaulle, não é um país sério e cada vez mais se distancia disso.

Essa série de episódios que trouxeram o “empresário” franco-iraniano ao futebol e à vida brasileira são indícios fortes de como o Brasil está se tornando atraente para negócios vultosos com a Copa como pano de fundo. O Santos está se “beneficiando” dos negócios de Kia, assim como o Corinthians, mas os protagonistas poderiam perfeitamente ser Flamengo, Cruzeiro ou Grêmio. O mais irritante não é vê-los lucrar com os ambientes nebulosos nos quais transitam, mas vê-los arrotar modernidade e decência. A história ensina que esse tipo de benefício cobra juros. O próprio Corinthians, Flamengo, Vasco e tantos outros que tentaram mamar nas aparentes mamatas como MSI, ISL, HMTF e afins, acabaram enredados por dívidas impagáveis e só não estão de portas fechadas porque este é o país da tiririca – e diga-se: cada um tem o que merece. Se o Brasil é assim é porque a maioria quer assim.

Cassiano Gobbet
Cassiano Gobbet é jornalista, formado pela Universidade de São Paulo e mestre em jornalismo digital pela Bournemouth University.
Top