O canto da mala que se acha

Os recentes “shows” do Santos de Robinho, Paulo Ganso e Neymar despertaram a época de reprodução de um animal desagradável, imortal e acéfalo. É uma criatura espalhada por todo o globo, mas que em cada país, tem características diferentes. Certamente é irracional (é acéfalo, oras), mas tem insights culturais que desafiam a antropologia. É a mala que se acha.

Um exemplo claríssimo de mala que se acha apresenta um programa de TV. Esse programa coloca um monte de gente desinteressante dentro de uma casa, estimula a trairagem e o egoísmo e enquanto isso, as pessoas se divertem vendo as neuroses das pessoas as devorarem. A mala comandante se acha muito, entendendo que pode passear pelos quatro cantos da criatividade humana e produzir obras de arte na literatura, na poesia, no cinema e tal. Por ter a capacidade de avaliação limitada, a mala não se dá conta de que suas produções intelectuais se aproximam em qualidade daquelas produzidas por um naco de granito. Alguns aplaudem. São as malas wannabe, espécie em franco processo de disseminação (como já dizia Nelson Rodrigues, um dos primeiros a detectar a explosão demográfica da espécie, os chamava de “idiotas”).

Mas voltando a falar das malas que se acham: elas estão aí e são massageadas nas suas glândulas maláceas por displays vistosos de futebol. Não importa se o jogo é entre Real Madrid de Di Stefano e Moluscos em Coma Athletic. A cada drible de Puskas em cima de um cnidário qualquer, eles vibram e concluem enfaticamente como o futebol tem de ser “alegre”, porque afinal de contas, eles sabem aonde jaz a verdade suprema da alegria.

Atualmente, o que ocorre é um fenômeno sazonal. No começo de todos os anos, quando os clubes ainda se preparam para a temporada no Brasil fazendo torneios cruéis, que colocam, frente a frente, times da primeira e da centésima divisão, vários embates Real x Moluscos vêm à tona. Os Moluscos são sempre massacrados. E a cada vez, as malas iniciam seu ritual de acasalamento que começa com urros primitivos semelhantes aos de camelos africanos. Elas decantam como é verdadeiro que o belo futebol é o de Robinho e Neymar driblando freneticamente cnidários, esponjas e crustáceos que jogam no Moluscos. Não subestime as malas: elas podem se tornar agressivas, especialmente quando os jogadores como os do Santos são repreendidos pelo vigésimo sexto drible seguido na marca de pênalti da própria área. Daí elas iniciam chiliques relativamente patéticos. Algumas babam (é uma espécie de orgasmo das malas).

Mas como é tudo sazonal, vem a temporada e as malas retornam para suas tocas para dar a luz a uma nova prole de malinhas. Suas tocas, que são recheadas de um confortável musgo, as deixam incólumes ao resto da temporada, onde o futebol do mundo real tem de ser jogado, aquele no qual infelizmente você não pode ter sempre um Naviraiense como adversário, não tem direito de fazer uma lobotomia nos zagueiros adversários antes do jogo e não pode atribuir a cada gol seu uma expulsão de dois jogadores do outro time. Nesse período, as malas adormecem e babam freneticamente, uma baba elástica e bovina, para acordar em janeiro seguinte, durante a Copa São Paulo, período a partir do qual irão retomar seu processo de acasalamento e decantação do “futebol-arte-que só-funciona-em-delírio”. Daí, tome poesia de qualidade fecal, cronismo romântico granítico e frases de efeito regadas a 51. Até que a temporada de verdade (onde times ruins e bons se defrontem – mas só times) recomece e elas se recolham.

Cassiano Gobbet
Cassiano Gobbet é jornalista, formado pela Universidade de São Paulo e mestre em jornalismo digital pela Bournemouth University.

16 Comments

  1. Bom, só pra constar, molusco não é cnidário, águas-vivas e medusas são cnidários, moluscos são um filo próprio.

  2. mala master virou até bandeira de uma torcida de um time brasileiro.

  3. Pepper, o problema é fazer oba-oba com campeonatos cada vez mais desinteressantes como os estaduais. Eu não disse que o Neymar, o Paulo Henrique Ganso e o Robinho não têm potencial, o problema é que estamos em março e parece que o Santos ganhou o Brasileirão do São Paulo, a Libertadores do Boca e o Mundial do Barcelona. Não quis dizer, no entanto, que esses torneios são infinitamente superiores do ponto de vista técnico, longe disso (vide o time que perdeu pro São Paulo quinta passada); são, claro, muito mais importantes. E o Pato, se não é o deus dos gramados que a imprensa aqui do Sul proclamou, também não pode ser chamado de “flop” em nenhuma análise minimamente séria – é titular absoluto do Milan.

    O Neymar precisa provar em Brasileirões e Copas do Brasil, em jogos decisivos, que ele pode render tanto como contra Naviraiense e Monte Azul. Ele AINDA pode ser um grande jogador. Mas ser chamado de craque contra esses times aí? Só se for pseudo-jornalista merchandeiro querendo fazer média com a torcida santista.

  4. Colega, acho que você tem uma boa dose de razão no comentário, mas parece um pouco maniqueísta, não? Pô, nenhum craque pode aparecer no estadual?
    Dá pra saber a diferença de um cara que vai arrebentar ou não. O Vagner Love por exemplo. O cara vai se dar bem numa 2ª divisão, num carioca ou mesmo na Rússia, mas além disso é só mais um bom jogador sem nada de excepcional. Quando ele surgiu já dava pra ver isso, assim como da pra dizer que o Neymar será muito melhor que ele.
    Mesmo o Alexandre Pato, nunca jogou no Maracanã, no Morumbi e no Mineirão. Será que tínhamos que esperar ele passar pelo brasileiro pra saber se é bom o não? (pessoalmente acho que ele ainda não confirmou a fama que tem, mas merece crédito).
    Por fim, pra quem já levou nas últimas copas Luisão, Denilson (este 2X) e Fred, levar o Neymar com certeza não será pior e você pensar que vamos pegar Coréia do Norte, Costa do Marfim e Chile… não muito diferente do Paulistinha.

  5. Não é fogo de palha. É cavalo paraguaio (aliás, expressão estritamente futebolística; já perguntei a um amigo que curte turfe, e ele diz que em seu meio essa expressão não existe). Esperem pegar um Grêmio da vida na Copa do Brasil; daí os gaúchos serão novamente alçados à categoria de carniceiros, inimigos da pátria e por aí vai. Ficam exaltando essa goleada como se fosse grande coisa, quando deveriam se perguntar porque não tiveram competência para evitar a partida de volta. O esquálido Grêmio pelo menos se classificou na ida diante de um rival igualmente irrelevante.

    Entendo que os “meninos da Vila” sejam incensados: num cenário paupérrimo do ponto de vista técnico que é o futebol nacional, eles se destacam com sobras. Mas depende daquilo que o torcedor quer ver: espetáculo ou eficiência e resultados. Não dá mais para reunir ambos atributos em um só time, por mais que os ufanistas insistam.

  6. Não acredito que esse Santos é fogo de palha e não acho que Neymar não seja capaz de desequilibrar contra uma equipe top. Principalmente depois de ver Borriello e Huntelaar na última quarta-feira…

    Tá certo que ateh muitos peladeiros amadores teriam condições de jogar no Naviraiense, mas não acho que muitos times grandes bateriam eles por 10 a 0…

  7. Muita gente boa da nossa mídia esportiva gosta muito de fazer média para ficar bem com a galera. Mesmo pessoas decentes às vezes não tem colhões de dizer o que pensam.

  8. Sensacional esse post.
    Concordo com tudo, mas alerto para um enorme perigo: Muita gente tida como boa em nossa mídia esportiva vem pedindo Neymar na Copa justamente por suas atuações diante do Molusco FC. Esquecem, por exemplo, que o garoto não foi tão bem no Mundial sub-17 do ano passado.

    Ainda bem que Dunga, do alto de sua “turrância”, não caiu nessa.

    Abraços.

  9. O Sócrates, cara de muito caráter, segue a máxima de ex-jogadores: Grande em campo. E ponto. abs

  10. Esse fenômeno sazonal influencia até mesmo seres usualmente racionais. No Cartão Verde de ontem, Sócrates e Xico Sá elogiavam o resgate da essência do futebol e lamentavam que o grande time do Brasil não dispute o torneio continental. O Doutor chegou ao ponto de sugerir que cada país deveria escolher arbitrariamente seus representantes na Libertadores a fim de que o “melhor time do momento” fosse acomodado, enquanto o escritor cearense afirmou não ver diferença entre o nível daquele torneio e o da Copa do Brasil.

    A razão para esses rompantes estava no massacre do Santos contra o Naviraiense na véspera, de longe o evento mais importante num dia que abrigou ainda jogos envolvendo Real Madrid, Milan e Manchester United.

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