Dizer que uma determinada situação chegou ao fundo do poço é sempre arriscado. A capacidade do ser humano de escavar novos túneis para a própria descida frequentemente surpreende e o que antes parecia impossível de piorar passa a ser uma condição ‘aceitável’, diante de uma nova realidade ainda pior.
Mesmo assim, é difícil, mesmo com uma imaginação fértil e desimpedida, imaginar o quanto mais o futebol italiano possa se enterrar na lama gélida e fétida na qual está enterrado hoje, muito, mas muito mais do que em qualquer outra época. Se até aqui, esta temporada podia ser comparada com o Titanic, agora nem isso. Talvez, no máximo, com a âncora do navio famoso.
Os acontecimentos de Catania, amplamente divulgados pela imprensa, não revelam um simples caso de ‘hooliganismo’ no futebol italiano. É verdade, há um componente de fundo social que até se repete em outros países europeus, mas a situação da Itália é sintomática de uma organização completamente doente, corrupta, antiquada e desligada de qualquer regime legal.
A morte de Filippo Raciti, o policial que trabalhava no estádio siciliano durante a partida entre Catania e Palrmo, não é um sinal do aumento do número de vagabundos que vão a estádios determinados a brigar porque não têm rigorosamente nada a mais para fazer. Esse é um detalhe acessório. Na verdade, a desintegração da instituição do futebol na Itália acontece há anos e passou por vários estágios nos quais a sua estrutura foi devorada.
E foi devorada pelo crescimento das torcidas organizadas? Não. Esse foi o sintoma. As causas reais foram eventos como os envolvendo escândalos envolvendo apostas, uso de passaportes falsos, doping de jogadores, transações viciadas entre clubes, tráfico de influências manipulação de resultados e diversos outros, culminando com a jogada de sujeira para baixo do tapete depois da Copa do Mundo, onde os grandes clubes e dirigentes italianos foram ‘perdoados’ para que não se ‘estragasse’ a festa da Copa.
O futebol italiano foi virtualmente destruído pelo completo desrespeito aos regulamentos e leis, passando por jogadores que não respeitam contratos, árbitros que recebem favores e cartolas que manipulam resultados. O exemplo de gangsterismo dado pela cúpula do futebol italiano foi claríssimo e a parte da torcida que estava na guerra campal de Catania entendeu a mensagem, que era: as leis existem para serem burladas.
O encontro desta segunda-feira e Roma para decidir o que acontecerá com a Série A deixou péssimos sinais. As ‘medidas drásticas’ sugeridas não passaram de óbvios ululantes, como a interdição de estádios fora das normas (coisa que já deveria estar acontecendo anteriormente), proibição de vendas de ingressos a torcidas visitantes em dias de jogo e uma possível proibição das bandeiras dos clubes.
O presidente da Federcalcio chegou a dizer que “mortes são o preço que o futebol tem de pagar”. Tal declaração deveria levá-lo para a cadeia – destinação também ideal para milhares de marginais que assolam os estádios italianos como verdadeiros parasitas. O corpo do policial Raciti ainda nem esfriou na sepultura e o cheiro de pizza já voltou ao ar. Vergonha é uma palavra fraca para o caso.
O caso de Catania…mas não só
A chaga dos ‘ultras’ (nome pelo qual as torcidas organizadas são conhecidas na Itália) é particularmente severa em lugares como Cagliari, Roma e Catania. Nesses lugares, os grupos são grandes, organizados e têm profundos ideais próximos de organizaçoes e atividades criminosas.
O presidente do Catania, Antonio Pulvirenti, se disse ‘refém’ de uma parcela “nojenta” da torcida do seu clube e que “não renunciou por causa dos bons torcedores”. Simples dizer que deixar o clube seria um gesto minimamente decente depois do que aconteceu.
Os clubes estão enterrados até o pescoço nessa lama. As quadrilhas que assistem os jogos das arquibancadas ganham ingressos e transporte grátis de seus clubes em troca de apoio que pode ir desde a gritaria em campo até como a vigilância de jogadores em suas vidas pessoais e atos mais próximos da ilegalidade.
O Catania já tem os problemas que tem há anos e a situação só veio à luz por causa da exposição do time à Série A. Mas clubes como Lazio, Atalanta e Fiorentina não vivem situações melhores. O controle está nas mãos dos ratos e as cores dos clubes estão sendo sujas por eles.
Neste final de semana se discutiu a possibilidade da adoção de leis anti-hooliganismo tão severas quanto às da Inglaterra. Infelizmente, para se passar da teoria à prática ainda há uma distância que parece intransponível. O sistema do ‘calcio’ está doente demais para imaginar que alguém vá endurecer. Não vai se adotar nada porque as partes interessadas estão ganhando muito. Exceto a torcidam de verdade, é claro.
