Uma Inter órfã de Moratti

“Algumas pessoas estão sujeitas à delicadeza da paixão; que as faz extremamente sensíveis a todos os acidentes da vida, e dão-lhes uma alegria vívida a cada evento próspero, da mesma maneira que uma dor insuportável quando elas se deparam com as agruras da vida”. Esta frase é da obra “Ensaios morais, políticos e literários”, do filósofo inglês David Hume, mas poderia, com precisão, descrever a personalidade do presidente demissionário da Inter, Massimo Moratti.

Moratti é um homem em extinção, pelo menos do que se sabe de sua vida pública. Correto e gentil ao extremo, colocou sua paixão pela Inter de Milão diante de tudo nos nove anos em que a dirigiu, e talvez este tenha sido seu maior erro, que o entorpecia de felicidade a cada vitória do time interista e que o dilacerava nas incontáveis crises to time ‘nerazzurro’.

Hume era um que via a humanidade com um ceticismo bem acentuado, acreditando pouco na bondade humana e vendo o homem de uma maneira não muito nobre. A saída de Moratti da Inter só faz dar razão ao pensador inglês. O futebol, como toda a sociedade, está repleto de pilantras, traidores, mentirosos, velhacos e toda sorte de golpista. O cavalheiresco Moratti descobriu isso na pele, e sentiu a dor insuportável em mais de uma ocasião.

A saída do dirigente, no entanto, foi tardia. Sua paixão desenfreada pelo clube o fez muito suscetível e permissivo, justamente numa entidade marcada pela caótica política interna, onde privilégios são defendidos a ferro e fogo, mesmo com um preço a ser pago pelo time, em campo.

Ao mesmo tempo em que comprou, com dinheiro do seu bolso, dezenas de jogadores para a Inter, Moratti prejudicou a gestão interista. Não foi duro quando precisava ser; confiou quando não podia confiar; acreditou quando não deveria acreditar; disse a verdade quando teria de ter mentido. Mas, pelo que dizem os mais próximos a ele, se trata de sua natureza.

O clube agora passa às mãos de Giacinto Facchetti, lenda interista dos anos 60, e dirigente há alguns anos. Facchetti, junto com Oriali, tem uma gestão desastrosa em suas mãos, mas sempre teve o álibi de ser tolhido pela magnanimidade de Moratti. Para dar um jeito na Inter, Facchetti tem de impingir uma política de punho de ferro. Precisa fazer uma limpeza em todo ambiente, especialmente no elenco. Este campeonato já está perdido, e a vaga na Liga dos Campeões que vem, em risco. Os próximos seis meses dirão se Facchetti é a solução ou a causa dos problemas de Appiano Gentile.

O fantasma da grande Inter

Massimo Moratti sempre teve sobre si um fantasma: a sombra de uma Inter vitoriosíssima nos anos 60, conduzida pelo seu pai, Ângelo, e pelo técnico Helenio Herrera, uma lenda no clube. Herrera era argentino, e esta foi uma das razões que fez Massimo contratar Hector Cúper, a sua decisão mais acertada nos últimos anos, mas que não teve a força necessária para vencer os vícios do clube.

Moratti assumiu a Inter num momento difícil, em 1995. Comprou as ações do ex-presidente Pellegrini. Sua idéia era retornar o clube ao lugar vitorioso. Todos viam nele o herdeiro ideal de seu pai, e num momento em que o Milan entrava num momento ascendente depois da rebordosa de conquistas, a impressão era que finalmente as glórias voltariam.

Contudo, somente uma Copa UEFA e dois vice-campeonatos chegaram ao colo do presidente Massimo, mesmo com as dezenas de milhões de dólares despejados anualmente nas contratações de mega-astros como Ronaldo, Seedorf, Roberto Carlos, Paul Ince, Vieri, e de outras dezenas de jogadores menos famosos. O problema sempre esteve na política do clube.

Quando contratou Marcello Lippi para a Inter, Moratti fez de tudo para levar também o DG da Juventus, Luciano Moggi. Era a cartada certa. Político hábil, cruel quando necessário, Moggi era a pessoa mais indicada para acabar com os grupelhos no clube. Mas a Juve ofereceu sociedade acionária e Moggi ficou em Turim. Lippi fracassou retumbantemente na Inter.

Três anos atrás, Moratti, seduzido pelo estilo duro de Hector Cúper, e pela mística de ter novamente um argentino no banco da Inter, decidiu uma refundação. Cúper acabara de levar o inexpressivo Valencia a duas finais de Liga dos Campeões, seguidas. O que não poderia fazer com os craques e o dinheiro da Inter?

Deu poder absoluto a Cúper, mas as contratações ainda passavam pelas suas mãos. Cúper geriu a Inter com mão de ferro, e arranjou inimizades com Ronaldo, Di Biagio, além do ódio da cartolagem que tinha sido colocada para escanteio. Seu primeiro ano na Inter foi irrepreensível, mas um desastre na última partida tirou o título tão sonhado por Moratti. Um desastre onde os grandes culpados foram os jogadores, e não o técnico.

A história de lá para cá, todos já sabem. Cúper foi perdendo força até ser despedido. E o sonho de glória de Moratti desvaneceu. Teve de dar lugar à realpolitik que governa o mundo desde sempre. O presidente se deu conta que as coisas tinham de tomar um rumo diferente. Sua gestão foi falimentar como dirigente, mas o cavalheiro Moratti continua encantando.

Defesa juventina em alerta vermelho

Uma perigosa combinação de contusões, rodízio, falta de entrosamento e concentração fez com que Marcello Lippi acionasse o alarme. Nas suas próprias palavras, a defesa juventina está em crise. O técnico de Viarreggio, no entanto, assegurou: a Juve não contrata ninguém. A pergunta é se deveria ou não faze-lo.

Pela primeira vez em muitos anos, a Juventus entra no returno tendo sofrido 21 gols. Excessivos para os 18 primeiro jogos. O ataque segue forte, com 41 tentos marcados até aqui, mas o segredo das conquistas juventinas é a defesa impenetrável, e os números são fiéis para tal retrato.

Na temporada passada, a Juventus sofreu, em 34 partidas, somente 29 gols; na temporada anterior, menos ainda: 23 gols. Nem mesmo nos dois anos de vice-campeonatos seguidos (perdendo para Roma e Lazio), a Juve tinha a defesa tão vulnerável. Foram 27 em 2001 e incríveis 20 em 2000.

Marcello Lippi está com dores de cabeça porque Nicola Legrottaglie não manteve o ritmo do início do campeonato. O jogador parecia ter se encontrado rapidamente, mas o crescimento físico dos adversários e uma pubalgia diminuíram o seu rendimento. O croata Igor Tudor não consegue se recuperar de lesões seguidas há duas temporadas (deve ser vendido no fim deste torneio), e a defesa acaba se segurando nos veteranos Montero e Ferrara. O problema é que Ferrara também está fora de combate (assim como o lateral Birindelli), e as escolhas estão zeradas. Queira Lippi ou não, a defesa do próximo jogo será composta por Iuliano-Montero.

Não é só a zaga que tem culpa. A saída de Davids, claro, deixou marcas. O holandês é um gigante na guarnição da retaguarda, e Appiah, mesmo promissor, é inferior. Thuram também rende abaixo do esperado, e Zambrotta, por ser um meia de origem, naturalmente expõe um pouco mais a primeira linha.

Perspectivas: se a Juventus tiver preparado seu condicionamento físico para atingir os píncaros na época da final de Liga dos Campeões (bastante possível), tudo OK. O time deve subir de produção em breve e, para variar, veremos uma arrancada ‘bianconera’ na reta final, com ênfase na Europa. Se não. Lippi está mesmo em apuros, especialmente se mais algum de seus homens chave entregar os pontos.

A culpa era do técnico?

Dificilmente um clube reverte uma má série de resultados demitindo um treinador. Normalmente, a série negativa reflete uma campanha de contratações errada, uma má preparação física, um mau ambiente entre treinador e jogadores. Isso não é uma opinião, é fato. A maioria esmagadora dos clubes que caem para a segunda divisão trocam de técnico durante a temporada.

Esta coluna cravou, semanas atrás, que Empoli e Ancona já tinham feito “votos de rebaixamento”. Sem nenhum previsionismo mágico. A equação que soma rabeira da tabela com troca de treinador é forte demais para ser vencida. Mas um clube toscano está querendo contrariar a regra.

O Empoli, sociedade que tem a sua história marcada por sobes-e-desces, trocou de técnico na quinta rodada. Mandou embora o ex-jogador Daniele Baldini e contratou Attilio Perotti. Parecia somente mais uma troca de nomes, mas pode ter sido engano. O Empoli está mostrando uma virada que pode salvar sua pele.

Há três rodadas que o clube vizinho da Fiorentina faz pontos. E diga-se de passagem, que em duas das partidas, visitou a Inter em San Siro e recebeu a Juventus, granjeando quatro pontos com uma vitória externa e um empate caseiro. Na terceira partida em questão, bateu o Ancona, que parece irremediavelmente perdido. A reação empolese é tão boa que o time já saiu da zona de rebaixamento, deixando Lecce, Perugia e Ancona para trás.

Segredos? Provavelmente se trata é de trabalho de um treinador acostumado a esta situação. Perotti teve reforços, é verdade, como o firme zagueiro Vargas, contratado junto à Reggina (e que faz falta em Reggio Calábria), e Vannucchi, que voltou do Catania. Mas no geral o time é o mesmo do ano passado. Como contraste, o Perugia fez quase dez contratações, que têm se mostrado inúteis.

O treinador do Empoli recuperou a auto-estima do grupo, acertou o meio-campo, com dois volantes (Lucchini e Grella, um jogador a ser acompanhado) e três armadores suportando o avante Rocchi, quatro gols nos últimos dois jogos, e performances que certamente o habilitam para times maiores.

“Então o Empoli não cai?” Devagar com o andor porque o santo é de barro. A luta contra o rebaixamento na Série A é a mais atroz das grandes ligas da Europa, e outros ameaçados como Modena, Lecce e Reggina também têm condições técnicas de evolução. O Ancona é o único que parece sepultado, enquanto o Perugia já começa a vagar pela tabela como um zumbi.

Curtas

Os atletas do Milan fizeram grande festa pelo gol de Rui Costa, contra o Ancona

O português não assinalava um tento no campeonato italiano há 1.031 dias, quando ainda vestia a camisa da Fiorentina, numa partida contra o Vicenza

Paolo Maldini quebrou mais uma marca

Completou sua 519a partida de campeonato coma malha milanista, igualando o interista Giuseppe Bergomi

Bernardo Corradi, centroavante da Lazio, chegou à sua 100a partida de Série A, sendo 48 delas vestindo a malha ‘biancoceleste’ do clube de Formello

O Ancona pode bater uma marca negativa, caso continue com o ataque que tem

O clube marchegiano tem somente 7 gols em 18 partidas

O recorde negativo, de 1989, é do Pisa, com 16 tentos nas 34 rodadas

E esta é a seleção Trivela da semana no campeonato italiano

Pagliuca (Bologna); César (Lazio), Ferrari (Parma), Natali (Bologna) e Stam (Lazio); Santana (Chievo), Di Natale (Empoli), Kaká (Milan); Rocchi (Empoli), Trezeguet (Juventus) e Bazzani (Sampdoria).

Cassiano Gobbet
Cassiano Gobbet é jornalista, formado pela Universidade de São Paulo e mestre em jornalismo digital pela Bournemouth University.
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