O erro do apóstolo teimoso

Não havia um apóstolo chamado Leonardo entre os participantes da Santa Ceia, mas a partir de sábado, em Milão, a mitologia católico-derbyniana ganhou um. O técnico da Internazionale foi tratado como um cão pela maioria esmagadora do estádio que urrou o grito de “Judas” para o ex-milanista. Talvez, aos olhos dos observadores imparciais, Leonardo não tenha cometido traição nenhuma (embora para o torcedor, isso não conte). Mas um pecado – não capital – ele cometeu: o da teimosia.

Desde sua passagem no Milan, Leonardo sempre foi motivo de desconfiança por conta de sua disposição tática. Quando vencia, era chamado de “2-4 fantasia”, em virtude de uma escalação com um meio-campo no qual não havia um nome dedicado à marcação e vários só ao ataque; quando perdia, Leonardo era visto como um neófito que não entende os conceitos básicos do esporte e que, além disso, dividia as tarefas do time: uma parte só defendia, outra, só atacava.

No jogo de sábado, Leonardo voltou a dar razão aos seus críticos. Xiita em sua interpretação “ofensiva” (entre aspas, porque Leonardo parece ser adepto da leitura brasilianista em que time ofensivo é o time com mais jogadores de ataque), o técnico foi enfrentar o Milan confiando suas defesas a Thiago Motta e Cambiasso, além de um Javier Zanetti que esbanja experiência, mas não é um agressor no desarme nem um general no que diz respeito à tática. Massimiliano Allegri fez o que se esperava dele, montando um setor forte fisicamente, sem abrir mão da técnica. Boateng, van Bommel e Seedorf são extremamente técnicos e conseguem dar andamento às jogadas tão bem quanto quaisquer outros, mas com a vantagem de poder reaver a bola quando sem sua posse.

O embate dos três milanistas (mais Gattuso) contra Cambiasso, Motta e Sneijder foi uma chacina – a chacina que deu ao Milan a chave do clássico. Alexandre Pato flutuou como quis nas costas dos volantes tendo que ser parado por Chivu sistematicamente. O romeno falhou no lance do gol, mas depois, foi espetacular, até ser expulso. E alí, a casa caiu. Com a assinatura de Leonardo.

A pressão existente em Chivu era um sintoma do vazamento no meio-campo, onde Boateng criava o espaço para Seedorf fazer uma partida à sua altura. Se o holandês tivesse jogado sempre o que podia (e não só quando queria), teria sido o melhor do mundo. No sábado, controlou a partida como quis (com a ajuda incondicional de Boateng). E Pato, jogando mais à vontade entre direita e meio, mostrou que está longe de correr riscos no time. Os dois foram os alicerces de uma vitória incontestável e que serve de alerta para a sorte interista (e italiana) na Liga dos Campeões.

Não se questiona que o elenco interista é melhor do que o do Milan, ou que há mais individualidades de qualidade em nerazzurro do que em rossonero. Só que é aí que entra o papel do técnico: ler as limitações e encontrar soluções que otimizem os recursos. No caso interista, isso significaria mais um homem no meio-campo em detrimento de um atacante, já que um trio Sneijder-Eto’o-Pazzini seria mais que suficiente para enfrentar a melhor defesa da Itália.

Leonardo preferiu manter-se fiel à solução que lhe deu vitórias inesperadas (como contra Palermo e Bayern) baseadas numa pressão numérica no seu ataque. Às vezes – quando o time concretiza as ocasiões e consegue segurar as pontas atrás – funciona. Mas normalmente, entre times grandes, o tiro sai pela culatra. O brasileiro teve todas as lições necessárias para isso quando comandou o Milan, mas não aprendeu.

No começo deste texto, disse que a agressão a Leonardo pela faixa exposta em San Siro não pode ser criminalizada. Seis meses antes, Leonardo jurara amor eterno ao Milan e que jamas treinaria um time na Itália. Para o olhar do torcedor, Leonardo é, com razão, um Judas que se vendeu por dinheiro (embora o mundo capitalista tenha passado a chamar isso de “profissionalismo”, argumento que não funciona para um tifoso apaixonado). Sua ida para a Inter foi motivada em muito por sua indisposição contra Silvio Berlusconi, que o chamou de testardo (cabeça dura, teimoso) quando Leo comandava o Milan. Em San Siro, o brasileiro deu razão a Berlusconi. Se ele quiser fazer a temporada interista vitoriosa, terá de provar que aprendeu com os seus erros.

Cassiano Gobbet
Cassiano Gobbet é jornalista, formado pela Universidade de São Paulo e mestre em jornalismo digital pela Bournemouth University.
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