A desnaturação africana e outras bobagens – II

Outro dia, um determinado colega dizia que o problema do futebol africano era que “tinha virado um centro de fornecimento para a Europa e por isso, só formava zagueiros e volantes”, aproveitando a força física do biotipo negro. Não é preciso ir longe localizar a besteira. O já citado Okocha, Drogba, Sulley Muntari e Eto’o não combinam com a hipótese e nem mesmo um “biotipo africano” existe como bloco.

Os jogadores do norte e oeste da África são muito mais corpulentos dos que os do sul e leste do continente. basta comparar um John Mensah, o armário ganês, com um fundista queniano. É uma diversidade equivalente ao tamanho do continente ou à que temos no Brasil, onde um Ramires não lembra em nada um Julio Baptista. E em relação à exportação, os que sucedem em ir para a Europa, quase invariavelmente são os mais fortes por conta da competitividade do esporte profissional na Europa. Estrangeiros jogam nessas ligas há décadas. O que aumentou foi a visibilidade dos ‘top’ africanos nas mesmas.

O intercâmbio dos africanos com a Europa é exatamente o que fez evoluir o rendimento das seleções africanas, mas elas ainda carecem de algo fundamental: organização. As federações daquele continente têm níveis endêmicos de corrupção e o uso das mesmas é puramente político. A contratação de técnicos europeus não é por qualidade, mas por negociata. E 90% dos profissionais que vão para lá vão pelo dinheiro e só. Não me lembro de um país africano que tivesse tido um projeto de longo prazo.

Treinadores como Winfried Schafer, Otto Pfister, Phillipe Troussier e afins têm currículos patéticos, assim como 99% dos técnicos brasileiros que vão para os países do Golfo Pérsico e adjacências têm a competência de um tambor. O curioso é que, no caso dos países do Golfo, a mídia brasileira nunca aponta o dedo para os técnicos brasileiros medíocres que passam por lá, apesar da evolução do esporte no país sofrer de um mal similar ao africano, uma administração infectada por um ‘oligarquismo’ corrupto.

Da mesma maneira que os governos dos países africanos, por milhares de razões históricas não cumprem com sua função institucional de prover o básico à população por conta de uma corrupção endêmica, as federações locais, igualmente corruptas, não realizam suas funções de estimular o futebol, preferindo investir em sedes luxuosas (como a do Gabão, inaugurada em maio) e treinadores de aluguel. A inversão dos valores serve para atender os donos do poder e não o legítimo interessado – o esporte. Tudo com a anuência da Fifa, que como sabemos, está interessada em tudo, menos no esporte.

E por que razão os times africanos estão jogando “pior”? Sob o ponto de vista do espetáculo, é inegável, mas o “enfeiamento” do jogo é o preço de passar a jogar futebol e não pelada pura. Pode ser lindo jogar um futebol irresponsável, mas certamente não há quem não prefira títulos. O período atual é a perda de uma inocência que já se foi há décadas, mas o caldo cultural que fez com que os africanos tivessem uma técnica específica não se perdeu. Num momento de menos turbulência no futebol de cada país, ele voltará a aparecer, caso a organização local seja mínima.

Gana passou de fase porque joga como um time. Um colega inglês, Jonathan Wilson, alertava que os EUA teriam dificuldade de ‘quebrar’ o meio-campo ganês por conta de um mix de força física com disposição tática – isso tudo sem seu principal jogador, Michael Essien. Não é um time que lembra os africanos históricos no espetáculo. Só que também não lembra os africanos históricos no resultado. E, creio eu, o torcedor de Gana está muito mais preocupado com este segundo.

Cassiano Gobbet
Cassiano Gobbet é jornalista, formado pela Universidade de São Paulo e mestre em jornalismo digital pela Bournemouth University.
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