O capitão doping

Quando um capitão da seleção campeã mundial é pego num exame de doping, a primeira reação é a de negação, nem que seja só no país em questão. Fabio Cannavaro, 35 anos, em melhor jogador da Europa, contudo, não recebe este tipo de guarida de forma unânime nem na Itália.

A carreira do zagueiro é pontuada por escândalos. Anos atrás, um video de Cannavaro se injetando uma substância misteriosa num quarto de hotel em Moscou, antes da final da Copa Uefa em 1999, correu o mundo. “Ah, como eu sou nojento”, dizia Cannavaro no vídeo. O Parma venceu a final (um passeio de 3 a 0 sobre o Olympique de Marselha) e o jogador disse que estava injetando “vitaminas”.

No escândalo do Calciocaos, já durante a Copa do Mundo, o então capitão da “Azzurra” Cannavaro defendeu explicitamente Luciano Moggi, arquiteto na maracutaia e à época “capo” da Juventus. No dia seguinte, foi obrigado a se retratar, refutando o apoio ao que dissera um dia antes, por determinação explícita da federação.

No lançamento do filme “Gomorra”, no qual o dia-a-dia da Máfia em Napoli é mostrado de maneiar crua e violenta (é uma espécie de “Cidade de Deus”), com os criminosos campeando e a gente comum tendo de se adaptar, Cannavaro disse que não gostava do filme porque denegria Napoli. “Claro, o problema é o filme, então”, ironizou um jornalista, crítico da posição do jogador, que é um ícone na cidade (ele é napolitano). Igualmente, no dia seguinte, ele deu outra declaração dizendo que não tinha dito nada daquilo.

Qualquer acusação de doping precisa ser levada a sério, mas quando acontece num país como a Itália, que tem um histórico recente da mais podre e fétida lama, e com um jogador cujo comportamento não parece ser exemplo nem para o mais duvidoso dos mortais, o cheiro fica mesmo insuportável. Mais ainda num momento em que a Juventus vai retomando seu lugar de “poderosa” no futebol italiano e mantém uma proximidade incômoda do treinador da seleção, da qual oito jogadores são juventinos. “Incômoda” porque ao se revelar que Lippi pode reassumir a Juventus depois do Mundial, nunca se sabe até onde o jogo de interesses está ditando as regras.

A verdade é que tanto a seleção quanto o futebol italiano de um modo geral são escravos de uma combinação nefasta que se formou com a conquista do Mundial aliada ao escândalo do Calciocaos. Os quadro dirigencial do futebol italiano (e aqui falo de um modo geral, envolvendo clubes e federação envolvidos diretamente ou não) tinha de ser expurgado após a desgraça planejada por Moggi, mas com a conquista do Mundial, ficou. Como herança, a seleção também manteve uma série de jogadores que hoje não estariam numa seleção dos 23 melhores jogadores da Itália, como Gattuso, Camoranesi, Grosso e Gilardino, por exemplo.

Nem a Inter, aparentemente a única que “ganhou” alguma coisa com o escândalo, teve ganhos reais. Todas as conquistas interistas terão sobre si a interrogação de se o time era bom ou se jogou sem adversários. Mas isso não é o pior. O pior é que a Inter tem um olho em terra de cegos. Tem um time invencível na Itália, mas que no confronto com equipes européias sem nada demais, revela limites decisivos.

Não sei se Cannavaro se dopou ou se foi só picado por uma vespa mesmo. O que sei é que eu – e a torcida do Flamengo – temos uma impressão péssima do assunto. A aura de corrupção e impunidade jamais deixou a Itália após 2006 e acabar com ela é a condição básica para se pensar em uma retomada de colocação no futebol europeu. O fato é que a Itália não só se apequenou (porque o campeonato italiano hoje, não é que esteja abaixo de Inglaterra e Espanha, mas também de Alemanha e equiparando-se às ligas “médias” da Europa), mas parece estar conformada com isso. Só mudanças estruturais (i.e. troca de lugar do poder) no futebol, como as que ocorreram na Inglaterra com o Relatório Taylor, vão reverter a tendência.

Cassiano Gobbet
Cassiano Gobbet é jornalista, formado pela Universidade de São Paulo e mestre em jornalismo digital pela Bournemouth University.
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