O sumiço das bandeiras

Outro dia ouvi na TV um jornalista (pelo menos acho que era jornalista – realmente não conheço o moço pelo nome) se queixando: “Essa divisão de cotas de ingressos por torcida vai fazer com que consigam matar o futebol”. Entendo a lamúria do colega. Ele, assim como eu, deve ter visto um futebol (e nem faz tanto tempo) onde estádios lotados divididos em duas cores faziam um espetáculo ímpar.E as bandeiras? Que saudades eu sinto das bandeiras. Quando os times entravam em campo, a arquibancada virava um espetáculo dinâmico e colorido.

Só que graças aos marginais das torcidas organizadas, assassinos profissionais (ou quase) e bárbaros na essência, as bandeiras viraram armas e os torcedores, soldados de gangues. Daí, a necessidade da limitação de cotas de ingressos.

A questão não é exclusiva do Brasil. Em todos os países da Europa, isso acontece em maior ou menor extensão. Em países onde a organização e o rigor da lei são mais firmes, a divisão é menos draconiana. Mesmo assim, quando a torcida do Liverpool vai a Manchester, chega por entradas fixas na cidade, é escoltada e tem um número limitado de ingressos. Na Itália e na Holanda, jogos como Atalanta x Brescia ou Ajax x Den Haag são de uma torcida só.

Giampiero Boniperti, lenda da Juventus, comentou assim a vaia racista que o negro Balotelli recebeu em Turim na partida contra a Juventus. “Não achem que na minha época a rivalidade era mais branda. Pelo contrário. Na hora do jogo, a torcida urrava na grade descontrolada. A diferença é que por mais que fôssemos xingados – e éramos muito – jamais ouvi algo como “Você tem que morrer!”. Pois é. Hoje, se ouve muito isso. Especialmente quando o indivíduo que ameaça está com seu bando. Sozinho, vira uma moça. Ou como diria Bezerra da Silva, “Você com um revólver na mão é um malandro feroz, feroz, sem ele anda rebolando até muda de voz”.

Vamos então continuar com saudades das bandeiras, mas sem dramalhão. A sociedade mudou, o torcedor não é mais o único ocupante do estádio (agora também existe a besta-fera da torcida organizada) e o Estado não se deu conta que precisa mudar a lei para coibir violentamente os vagabundos de plantão. Ou melhor: se deu conta, mas ainda não tem interesse. Só autoridades oportunistas se habilitam a levantar essa bandeira até que consigam se eleger ou ganhar a notoriedade que queriam.

Mas a mídia poderia ajudar. Não passando a semana alimentando provocações nas mesas redondas da hora do almoço, por exemplo, já seria uma colaboração. Outra seria não colocar os horários de jogos para combinar com as transmissões de novelas ou afins. Os responsáveis pelas “adaptações” dos horários do futebol à grade da TV são vistos, frequentemente, se queixando de problemas que eles mesmos causam.

Conclusões:

  1. A divisão do estádio com cotas de torcidas tem de continuar e em alguns casos, ser até radicalizada. Pelo menos até as autoridades pararem de circo e trabalharem (algo que é bastante raro no governo).
  2. A mídia poderia se dar conta que tem ingerência direta na violência do torcedor. O estilo “polêmico” de alguns “jornalistas” (sim, sempre entre aspas, porque um diploma de uma faculdade irrelevante não transforma um zebu num doutor) é simplesmente a combinação de ignorância, irresponsabilidade e uma necessidade de exposição.
  3. A violência também começa quando se trata o futebol como uma propriedade particular. Fazer um jogo começar as 22h só faz com que o torcedor de verdade fique em casa (porque tem de trabalhar no dia seguinte), deixando a arquibancada livre para o “torcedor profissional”, que vive mesmo de sua participação na organizada.
  4. Minha saudade das bandeiras aumentou.

Cassiano Gobbet
Cassiano Gobbet é jornalista, formado pela Universidade de São Paulo e mestre em jornalismo digital pela Bournemouth University.
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