Luisito e a mordida

Na última terça 24/06, o Uruguai vencia a Itália por 1×0, resultado que classificava a celeste para as oitavas de final do Mundial 2014 e desclassificava os italianos. O jogo valia pela última rodada da fase de grupos do torneio. A azzurra tinha um jogador a menos (Marchisio, expulso) e os uruguaios, após gol do predestinado Godín, seguravam o jogo. Nós brasileiros estamos habituados a ouvir o termo “catimba”, sobretudo quando times do nosso país enfrentam adversários sul-americanos em disputas de Taça Libertadores.

A “catimba” é a astúcia, a malandragem no bom português. Na antiga Grécia o termo “areté”, que passou a significar virtude no sentido mais racional da palavra no século IV a.C; teve em seu período bárbaro ancião, um significado próximo a malandragem astuciosa. O guerreiro helênico do tempo de Homero não era racional como Sócrates, o filósofo. Em aspecto futebolístico, por “catimba”, entenda tentativas não futebolísticas de desestabilizar ou tirar a concentração de um adversário em campo. A “catimba” pode estar um grau abaixo da ofensa ou da agressão física.

Quando este que vos escreve enalteceu a vitória desportiva de Luis Suárez contra a Inglaterra, com seus 2 gols sobre os ingleses na rodada anterior, relembramos o histórico de “excentricidades” perpetradas pelo atacante (clique aqui). Nos esquecemos dos casos em que Luisito mordeu seus adversários. Segundo levantamento dos apresentadores do programa “4 em campo” da rádio CBN, que foi ao ar na noite após o confronto, Luisito já havia mordido dois adversários em jogos oficiais.

Ainda no Ajax, Suárez mordeu um oponente em partida valida pela liga holandesa. Em 2013 o uruguaio mordeu o defensor sérvio Branislav Ivanovic, do Chelsea, em derby válido pela Premier League inglesa. A mordida em Ivanovic só aumentou os olhos sensacionalistas britânicos sobre Luisito, que já se via incomodado com as dimensões das consequências de seus atos. Lembrando que Suárez protagonizou o caso da ofensa racial em relação a Evra, do Manchester United. Em ambas as mordidas houve punição, incluindo-se uma proporcionada pelo próprio Liverpool, clube em que Luisito atua.

“Areté” uruguaia, malandragem italiana?

Voltando a partida entre Uruguai e Itália, aconteceram vários lances em que os defensores Barzagli e Chiellini se agarravam ou com Cavani ou com o próprio Luisito, dentro da área italiana. Ora, dentro da área num lance de bola parada acontece de tudo, desde ofensas que ninguém ouve, passando por “encoxadas”, até passadas de mão na bunda, que ninguém vê. Pergunte a qualquer atleta que já disputou uma Libertadores.

Desportivamente, uma ofensa fere a integridade moral do oponente. Uma agressão física põe em risco a capacidade corporal do oponente (ainda que o futebol demande contato físico), no prosseguimento da partida. E uma mordida? O espanto, o inaudito, o inesperado. Para alguns espectadores, o horror. Numa disputa corporal com Chiellini, Luisito desferiu no ombro do zagueiro italiano, sua primeira mordida numa partida de copa. O lance sequer foi percebido a olho nu pelo árbitro.

Como também foi afirmado no citado programa “4 em campo” pelo apresentador Carlos Eduardo Éboli, a FIFA já puniu atletas por indisciplina, revendo imagens não percebidas pelo árbitro, posteriormente ao jogo. Citou o caso do italiano Tassoti que desferiu uma cotovelada no atacante Luis Enrique da Espanha, durante o mata-mata da copa de 1994.

A cotovelada de Tassoti porém, rendeu uma camisa branca encharcada de sangue ao atacante ibérico. Mas Luisito, dialeticamente não feriu a integridade moral de Chiellini, como o italiano Materazzi fizera em relação ao francês Zidane, antes deste desferir-lhe uma cabeçada na final do Mundial de 2006. E se futebol é esporte de contato físico, Luisito sequer causou um sangramento no ombro de Chiellini, que sempre joga com os braços abertos, visando segurar ou obstruir os atacantes adversários. O curioso é perceber exatamente três defensores italianos (Tassoti/Materazzi/Chiellini) em três copas diferentes, antagonizando três lances polêmicos…

Quando Zidane deu a cabeçada em Materazzi na prorrogação empatada da final entre Itália e França em 2006, acabou expulso. O historiador da arte Jorge Coli descreveu a cena enquanto a humanisticamente justificável “cólera de Aquiles”. Depois que o Uruguai venceu Gâna nos pênaltis, nas quartas de final do Mundial 2010, Sebastian “Loco” Abreu afirmou ironicamente que se Zidane bate um pênalti “de cavadinha”, é gênio. Abreu que na ocasião converteu seu pênalti de “cavadinha”, foi tido como louco.

Luisito jogou o jogo de linguagem do fair play britânico ao vencer a Inglaterra. Foi a partida de sua vida, maior do que qualquer taça FIFA. Mas Luisito joga o jogo lúdico do futebol malandro sul-americano. Luisito é a versão futebolística da personificação da picardia expressa pela cigana Carmen, da ópera de Bizet. Luisito é a criança da terceira transmutação do homem, proferida pelo Zaratustra de Nietzsche. Luisito deu uma mordida no politicamente correto/careta, que sempre ganha contornos “moralistas”, sob a ótica tupiniquim.

Como diria o poeta grego Arquíloco, dando voz ao soldado helênico covarde que fugiu do campo de batalha no tempo da “areté” bárbara: “que me importa o escudo, salvei-me o côiro!” O Uruguai segue no Mundial 2014, com ou sem Luisito.

Alexandre Kazuo
Alexandre Kazuo é blogueiro de futebol há mais de 10 anos. Ex-colaborador do Trivela (2006-2010) e ex-blogueiro do ESPN FC Brasil (Lyon). É mestre em filosofia contemporânea e também procura por cultura pop, punk/rock/metal. Twitter - @Immortal_Kazuo
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