Hoje, como ontem, como amanhã

É pouco provável que alguém tenha notado, mas eu tenho, lentamente, postado no blog, todo o arquivo da minha coluna sobre futebol italiano, assinada com poucos intervalos desde 1998. Digo que é pouco provável porque os posts entram com a data antiga e não são notificados em nenhum agregador. Um deles, feito durante a época do Calciocaos, me fez ter um deja-vu em ralação à função da imprensa – ou da falta que ela pode fazer no andamento da sociedade quanfdo está comprometida.

No artigo (que você pode ler aqui), eu questionei o modo como a imprensa italiana se eximiu de responsabilidade quando a bomba estourou, ainda que os liames entre dirigentes corruptos e jornalistas coniventes fossem nítidos.

À época, quando eu estava ainda consternado com o ocorrido, cheguei a escrever para o jornalista Candido Cannavó, luminar do jornalismo italiano (hoje já falecido)  que escrevia na Gazzetta Dello Sport e perguntei: como seria possível a imprensa não se colocar entre os culpados depois de um escândalo daquela magnitude e com tantos jornalistas envolvidos? Cannavó, um mito no jornalismo esportivo italiano, me respondeu que as denúncias vinham sendo feitas, mas que ninguém prestava atenção. E eu respondi a ele: “Desculpe, direttore, mas não creio que tenham sido feitas adequadamente, então”.

Resolvi mencionar o acontecido para explicar o deja-vu. Sinto hoje a mesma sensação que eu tinha nos anos anteriores a 2006. Jornalistas, dirigentes, agentes e jogadores me parecem amigos demais. Há um ambiente promíscuo de troca de favores e informação diante de sinais claros de problemas latentes. Jogadores rompem contratos seguindo ordens de agentes e não há condenação; jogadores se envolvem em patrocínios de outros atletas (que jogam em times diferentes) e ninguém acha um absurdo; jornalistas se calam quando seus empregadores estão de alguma forma envolvidos em um assunto polêmico (e aí, que fique bem claro, nem sempre os empregadores são meios de comunicação);  jornalistas “polêmicos”, que fazem “denúncias”, gritam em programas que se assemelham aos policiais, o fazem atendendo interesses bem definidos e que não têm nada a ver com os preceitos do bom jornalismo (até porque a maioria deles jamais foi a uma faculdade de jornalismo na qual a maioria dos professores conhecessem um mínimo de gramática). De toda essa promiscuidade, todos levam algum benefício: o jogador ganha elogios, o agente, dinheiro, o cartola, poder, e o jornalista, “furos” que lhe foram passados pela ciranda obscena.

Para os poucos que se levantam sistematicamente contra a bandalheira, resta a tarja de “malas”, “ranzinzas” e “chatos”.

Com uma Copa do Mundo e uma Olimpíada por vir, além da discussão em tornos de direitos de TV que podem fazer muitos personagens despossuídos passarem a milionários, é certo que haverá escândalos. Muitos. A Copa e a Olimpíada vieram para o Brasil sob suspeita e num processo sabidamente corrupto, que envolve o pior tipo de gente possível, os políticos do esporte. Hoje, os jornalistas que deixam escorrer de sua boca a baba bovina à qual se referia Nelson Rodrigues, com o olho rútilo, porque são rêmoras do sistema – exatamente como os que se apearam à doença que nocauteou o futebol italiano em 2006.

Nem com toda a falta de fé que tenho na inteligência dos ‘situacionistas’, consigo crer que realmente se acredite que a rebelião do Clube dos 13 é natural, que não se saiba que o estádio do Corinthians será pago com dinheiro público e em licitações superfaturadas e que a reformulação pela qual o Rio de Janeiro passará com vistas a 2016 fará de muita gente rica, zilionária, que jogadores vão e vem do leste europeu em transações com dinheiro duvidoso, que “parceria” significa um sinônimo conveniente para trapaça, etc. Quando explodirem os escândalos, essa mesma gente fará cara de surpresa e dirá que denunciava tudo há muito tempo.

Eu gostaria muito que a cobertura esportiva se fizesse com uma pauta genuinamente esportiva – mas não dá. Hoje, os argumentos esportivos perdem feios para a quantidade de mutretas. O planejamento dos clubes inexiste, seus elencos montam-se e desmontam-se a cada ano, disputa-se torneios patéticos e os novos craques surgem com a graça de Deus, porque raros são os clubes que o fazem profissionalmente. Os indícios de uma corrupção inédita até para os padrões brasileiros estão aí para quem quiser ver. Não há provas? Bem, como disse um ex-presidente da Petrobrás numa entrevista em 1991, “você não vai ver um recibo assinado por um corrupto”. Há indícios – aos cântaros, que segundo Conan Doyle, podem valer como uma prova. Mas para isso, alguém precisa se levantar – e essa é a função do jornalista. Exatamente o que quase ninguém faz e que depois de estourados os escândalos, todo mundo dirá que fez.

Cassiano Gobbet
Cassiano Gobbet é jornalista, formado pela Universidade de São Paulo e mestre em jornalismo digital pela Bournemouth University.
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