Mau hábito

O futebol italiano já foi o melhor do mundo. Não importa o que queiram dizer madrilenos e barcelonistas, quando a Série A era um torneio em que as ingerências extra-campo eram marginais, não tinha para ninguém. Mas isso é passado. Hoje, quando vira notícia, raramente não é por alguma desgraça.

Neste final de semana, mais uma vez, a Série A foi golpeada. Depois de passaportes falsos, apostas, doping, fraude de resultados, fraudes contábeis, corrupção de árbitros, lavagem de dinheiro, bancarrotas fraudulentas, racismo e violência nos estádios, novamente as torcidas organizadas revelaram a sua verdadeira face: a de organizações criminosas.

O enredo é simples: tentando apartar uma briga entre ‘organizados’ de Lazio e Juventus em um posto numa auto-estrada em Arezzo (região da Toscana), um policial acabou acertando um torcedor que não tinha nada a ver com a história. Gabriele Sandri, de 26 anos, viajava a Milão para acompanhar a Lazio, mas viajava como ‘civil’.

A federação cancelou a partida entre Inter e Lazio, que ocorreria em San Siro, mas decidiu que os outros jogos aconteceriam normalmente. Aparentemente a situação era de calma, exceto em Bérgamo, onde a Atalanta receberia o Milan. Lá, a torcida mais perigosa da Itália exigia que não se jogasse a partida. Chefes de torcida conclamavam abertamente seus ‘soldados’ que faziam pressão com os rostos mascarados dimensionando o quão fora-da-lei e surreal era o episódio.

Os jogadores dos dois times entraram em campo de luto (exceto o milanista Seedorf, que justificou a negação dizendo que era um episódio que “não tinha a ver com futebol”) e começaram a jogar. Foi quando a curva atrás do gol atalantino mostrou que não estava para brincadeiras e atacou violentamente o vidro de proteção ameaçando entrar em campo. Quando o vidro blindado cedeu, o árbitro Massimiliano Saccani suspendeu o jogo. E que fique claro: a marginália atalantina não parou o jogo por solidariedade ao torcedor morto. Era somente uma prova de força – bem sucedida, diga-se.

Pior ainda foi a situação em Roma. Unidas, as “torcidas” de Lazio e Roma foram para cima da polícia e o que se viu foi uma verdadeira guerra civil nos arredores do estádio Olímpico. O ataque se estendeu à sede do Comitê Olímpico Italiano e um ‘revival’ do ocorrido em Catania no começo do ano, quando foi morto o policial Filippo Raciti. Ninguém morreu, mas pelo menos 40 policiais ficaram feridos.

As imagens correram o mundo. “Ultras invadem a Itália”, publicou a imprensa espanhola; “Hooligans, um drama italiano”, disse o francês L’Equipe. A Itália, pela enésima vez em poucos anos, se apresenta ao mundo como um antro de corrupção, indisciplina, impunidade e violência. A opinião do técnico da ‘Nazionale’, Roberto Donadoni é muito sintética: “Se parar o campeonato fosse adiantar alguma coisa, eu pararia. Mas o problema é que o ocorrido é um sintoma dos valores de hoje. Essa é a verdadeira tragédia”.

Resposta draconiana e a culpa da TV

“Mas por que razão não se cancelou a rodada toda e somente Inter x Lazio”, há de se perguntar o internauta. A resposta é: por causa da TV. Como disse o jornalista Italo Cucci na RAI, neste domingo, o futebol hoje “pertence à TV”. Lá, como aqui, a os interesses da TV é o que contam e o resto que se ferre. Por isso é maior ainda a necessidade de punições “exemplares”, como disse a ministra Giovanna Melandri nesta segunda-feira.

Aparentemente, as autoridades italianas se preparam para dar a resposta mais dura possível. Já se anunciou a proibição de torcidas organizadas rivais para todas as divisões. Os acusados de violência em Roma terão o séríssimo agravante de “terrorismo” adicionado às suas acusações (já que o ataque foi premeditado e contra a polícia). Se cogita uma paralisação no campeonato. A Atalanta deve ter o resultado da partida determinado como um 3 a 0 para o Milan visitante e mais uma vez o país se pergunta: como lidar com a questão?

O futebol italiano, naturalmente, não é o problema e sim um sintoma. Mazelas sociais muito mais profundas afloram no futebol em diversos lugares por causa das condições propícias do esporte para que marginais se agrupem e se organizem. Repetindo: marginais. Não cabe nenhum tipo de atenuante nem justificativa aos bandidos que vão mascarados aos estádios, assim como não se pode classificar de “terrorista” um bandido comum só porque ele se organiza.

Inúmeras medidas têm de ser tomadas na sociedade para que se coíba esse tipo de violência, mas em caráter de urgência, a Itália tem de fazer o seu Relatório Taylor e combater o hooliganismo com a mesma dureza que a Inglaterra fez no final da década de 80. A situação não será resolvida, mas ao menos o cidadão comum poderá andar na rua sem medo de ser espancado pelo primeiro grupo de covardes que encontrar fantasiado. A Itália tem de escolher entre reafirmar a sua civilização ou admitir seu fracasso como país, como governo e como sociedade. O problema é de todos. O que vai acontecer só ficará claro se as anunciadas medidas “duras” se concretizarem. Se não, é palhaçada. Outra vez.

Sem ânimo

Na semana passada, um assunto foi manchete na Itália. Assim como a podridão do ‘calcio’, também esse não era uma novidade, mas sempre chama a atenção. Ronaldo, craque indiscutível, parece desmotivado no Milan.

Como tal coisa seria possível? Estaria ele ‘forçando’ uma transferência? Por que ele faria isso, uma vez que seu contrato acaba em agosto e ele pode ir para onde quiser de graça? Ele não tem bom ambiente no clube? Igualmente improvável, já que desde o primeiro minuto, o atacante foi mimado por torcida e elenco.

O fato é que já há reclamações do desinteresse do Ronaldo por parte dos ‘senadores’ e isso no Milan não é um bom sinal. A hierarquia no vestiário do clube é tradicionalmente severa e respeitada. Casos anteriores de contestação por parte dos líderes se deram com nomes que deixaram o clube ou se enquadraram. Pelo histórico de Ronaldo, é difícil imaginá-lo ‘enquadrado’. Logo…

Curtas

– Entre os pontos positivos (se é que dá para tirar algum) da jornada fúnebre, está o comportamento da torcida do Parma.

– Mesmo jogando com a odiada Juventus, não houve um único incidente no Ennio Tardini e os ‘Boys’ não fizeram a coreografia ensaiada durante duas semanas para celebrar os gols sobre a Juve.

– O policial que matou Gabriele Sandri deve ser indiciado por homicídio culposo – ou seja, aquele ocorrido sem a intenção de matar.

– Seleção Trivela 12a rodada:

– Castelazzi (Sampdoria); Galante (Livorno), Aronica (Reggina) e Maggio (Sampdoria); Gasbarroni (Parma) , Knezevic (Livorno), Tedesco (Palermo), Vigiani (Reggina) e Baiocco (Catania); Amoruso (Reggina) e Pepe (Udinese)

Cassiano Gobbet
Cassiano Gobbet é jornalista, formado pela Universidade de São Paulo e mestre em jornalismo digital pela Bournemouth University.
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