Uma entrevista com o mestre Claudio Carsughi

Trivela: Bem, o nosso site como é feito por estudantes de jornalismo questiona o trabalho da imprensa esportiva nacional, não só em relação à profundidade, mas também quanto à formação profissional…

CC: Bem, eu diria que não é generoso fazer uma comparação direta porque as condições econômicas são completamente diferentes. Um exemplo: na Gazzetta Dello Sport (diário italiano de esportes), existe um cara que só cobre automobilismo, e outro só cobre motociclismo. No grande prêmio Brasil de cada uma das categorias, vem um dos dois para cá. Aqui, o jornalista acaba sendo obrigado a fazer um pouco de tudo, e se ele for especialista em uma só coisa, a menos que seja futebol, ele não sobrevive. Não é generoso exigir dele um preparo que custa dinheiro e tempo. Para se falar de fórmula 1, por exemplo, é obrigatório que você tenha um embasamento tecnológico. Se você fez faculdade de Direito, não te ajuda muito. Quando o cara começa a te falar de momento de inércia, você não vai saber sobre o que ele vai falar.

Trivela: Mas a culpa desta filosofia de trabalho por assim dizer não estaria nos meios de comunicação, que não exigem um trabalho mais profundo, e só se preocupam em otimizar gastos ?

CC: Ah, claro você tem razão.

Trivela: Numa palestra outro dia na PUC-SP, o José Trajano levantava o fato de que o jornalismo esportivo não é levado tão a sério quanto as outras editorias.

CC: Tem toda razão

Trivela: …o jornalista esportivo é um pouco tido como “café com leite”. Eu vejo na RAI por exemplo, que o jornalista esportivo tem garantido o seu espaço. Quando ele entra no ar, todo mundo presta atenção. Eu não sei o que vem primeiro é o ovo ou a galinha, mas ele faz uma cobertura de mais qualidade, e em compensação é mais respeitado.

CC: Sem dúvida. Se você é editorialista de uma Gazeta Esportiva, você não tem o peso de um editorialista de uma Gazeta Mercantil.

Trivela: Como o Sr. vê o atual momento da imprensa esportiva hoje, em comparação com a de anos atrás?

CC: Por formação pessoal eu sou um otimista, então acredito que as coisas estão melhorando. Mesmo sem ter o hábito de acompanhar de perto a imprensa escrita nacional, eu sinto um avanço na qualidade do jornalismo. Esse jornal novo, o Lance, me parece bem feito. Mudou um pouco aquele estilo que tinha a Gazeta Esportiva, uma coisa meio antiga…Mas certamente eu não aconselharia ninguém a ser jornalista esportivo no Brasil

Trivela: Esse é um assunto que eu quero abordar: como fica esse aspecto do envolvimento de jornalistas com venda de jogadores, ou de publicidade ? Isso não é contraditório com a função jornalística ? Não existe um dilema entre fazer jornalismo e trabalhar na função de jornalista sem se preocupar com os princípios básicos da profissão?

CC: Eu faço uma distinção clara entre estas duas questões. Se você como jornalista vai vender jogadores, sua opinião sempre vai ser questionada, pois não se sabe se você tem interesse na negociação daquele jogador. Isto tira a credibilidade, justamente a maior virtude do profissional. O seu ouvinte pode até não concordar com a sua opinião, mas se ele questiona a sua lisura, aí é uma coisa séria. Aí então você tem essas pessoas que andam no fio da navalha. Aqui mesmo na rádio, nós temos profissionais que também vendem publicidade, mas é uma coisa que…

Trivela: Gera polêmica…

CC: …gera polêmica. Todas as vezes nas quais tentam me envolver em falar alguma coisa sobre um produto eu saio fora. Não vinculo o meu trabalho com algum produto, não digo que esse banco ou esta cerveja é melhor do que aquela. Posso até achar, mas é uma opinião pessoal.

Trivela: Mas não há por exemplo uma diferença entre o profissional que vende placas de publicidade e o que vende jogadores ?

CC: No fim é tudo a mesma coisa. É uma forma na qual você ganha dinheiro através do teu trabalho voltado para o outro lado.

Trivela: Mas uma placa por exemplo não supõe que a coisa já esteja ali mais clara, sem uma segunda intenção ?

CC: Não. Por exemplo, se você elogia o trabalho do presidente do Flamengo, que é sócio da Traffic, que negocia estas placas, sua opinião pode ser interpretada como tendo duas conotações.

Trivela: É mesmo uma barreira muito tênue entre uma coisa e outra.

CC: A única coisa que eu acho é que tem de haver uma divisão muito clara entre uma coisa e outra. Na Itália, três apresentadores do porte de um Gugu Liberato aqui no Brasil foram condenados à prisão porque recebiam um extra por fora para privilegiar mais uns spots publicitários do que outros. Não foram para a cadeia porque eram réus primários. Na minha carreira eu sempre procurei dividir completamente, embora se fechar à esta possibilidade te feche muitas maneiras de se ganhar dinheiro.

Trivela:O Sr. crê que as faculdades de jornalismo formem mal os profissionais, pelo contato que o Sr. tem com profissionais que chegam ao mercado?

CC: Olha, nunca entrei em uma faculdade de jornalismo na vida, então não posso dar uma opinião mais acadêmica. Mas de uma maneira geral, sinto que existe uma deficiência seríssima no que diz respeito à cultura geral. Às vezes, digo uma coisa banal, e algumas pessoas me olham como se eu tivesse dito algo esquisitíssimo.

Trivela: Mudando um pouco de assunto, como o Sr. vê o atual momento do futebol brasileiro? Não sobre a safra de jogadores brasileiros, que sem dúvida é muito boa, mas como estão os elencos dos clubes brasileiros? Há uma descendente, uma ascendente ?

CC: Primeiro, temos que deixar claro que o maior mal do futebol brasileiro é uma praga chamada dirigentes esportivos. Eles são em muitas vezes despreparados, em outras ambiciosos. Quem é rico quer aparecer, quem não é rico quer enriquecer. É fácil fazer exemplos: o falecido Vicente Matheus, mesmo sendo um empresário competente na sua área, jamais teria sido entrevistado por exemplo pelo Jornal Nacional se não tivesse sido presidente do Corinthians. Esse o exemplo de quem tem dinheiro e é ambicioso. Não vou fazer exemplo de quem fez dinheiro às expensas dos clubes, embora hajam muitos ex – presidentes de clubes que enriqueceram e não foram presos. A esses dirigentes falta um mínimo de humildade para saber quais são os seus limites. Ninguém nasce sabendo nada, e cada um tem suas aptidões. Os dirigentes fizeram uma opção clara que é a da quantidade sobre a da qualidade. Precisa – se de dinheiro, então faz – se mais jogos. Assim, ignora – se a lei da oferta e da procura. Como o produto é comum, ele vale menos, conclusão óbvia. Se alguém usasse esses critérios nas suas próprias atividades pessoais, certamente faliria.

Outro fato é a tentativa de se ignorar o espaço e tempo. O ano tem 365 dias. Tirando-se 60 dias de férias e de pré – temporada, absolutamente indispensáveis para se preservar o jogador, sobram 300 dias, e nesse tempo não cabem todos os torneios que esses caras querem fazer. Muito mais lógico seria fazer menos partidas, e campeonatos sérios. Quando digo sérios digo com regulamentos que não mudem, claros. No Brasil, os regulamentos são feitos para que haja margens de dúvidas e que as coisas possam ser decididas nos tribunais.

Um caso específico para mostrar como se banaliza o futebol: nesses últimos dias, jogam Palmeiras e Cruzeiro, que já jogaram na final da Copa do Brasil, e jogarão a final da Copa Mercosul . Isso não é admissível. Você pode gostar muito de faisão, mas se comer todos os dias, vai ficar de saco cheio. Vai querer arroz e feijão.

Trivela: Posso então concluir que o Sr. acha que a qualidade técnica do futebol brasileiro caiu nos últimos anos ?

CC: Claro. O jogador fica sobrecarregado, não tem tempo de treinar, não consegue eliminar defeitos de base. Você vê, existem jogadores profissionais que tem problemas de cabeceio.

Trivela: Ronaldo

CC: Isso se corrige. Há treinamentos específicos que diminuem esses problemas. Tem jogadores que só chutam com um dos pés

Trivela: Viola

CC: …ou só usa um dos pés para subir no bonde. Sem treino é impossível melhorar, mas é preciso tempo.

Trivela: E quanto ao êxodo de jogadores? O Brasileiro não se esvazia? Os dirigentes têm a máxima de que é preciso se vender jogadores para que se possa manter os clubes. Existe algum  ponto positivo neste êxodo que não seja para dirigentes ou empresários?

CC: Em princípio, ele traz mais pontos negativos do que positivos. Mas dado o caos do futebol brasileiro, ele proporciona a possibilidade ao grande jogador, de ir para um campeonato de melhor nível, organizado, que lhe dá maior expressão e conseqüentemente proporciona melhores salários. É quase impossível ficar no Brasil com esta confusão. O jogador brasileiro ele tem vontade de voltar ao Brasil, mas não dá. Pegue o exemplo do Júlio César. Veio do Borussia para o Botafogo, ficou cinco meses e foi embora correndo de volta. O que me parece grave é o fato dos jogadores agora estarem assinando contratos com 16, 17 anos, indo embora muito cedo.

Trivela: Um exemplo disto é o Eriberto, ex – volante do Palmeiras de 19 anos que hoje é titular no Bologna

CC: Isso. Eriberto poderia ficar aqui por muito mais tempo, se lhe fossem dadas condições. Hoje ele certamente está muito melhor lá, ganhando muito mais. Hoje existem brasileiros jogando em todo o mundo. Qual não foi a minha surpresa no ano passado quando ao ver o Spartak de Moscou eu vi lá um jogador negro, que era o ex – corinthiano Robson. Hoje no Venezia joga um menino de 19 anos, Bilica que eu nem imaginava que estivesse na Itália

Trivela: Junto do centroavante Tuta

CC: Sim, o Tuta eu sabia, mas o Bilica eu realmente não fazia idéia. É um bom jogador, tem qualidade. Deve ter ido para lá a troco de nada ou pouco. Isso é negativo. Não acho que se deva cercear a liberdade de ir ou não, mas sim se deve dar condições para que o jogador não queira sair daqui, como se fez no vôlei.

Trivela: Saindo do campo, e indo para o banco. Sobre os treinadores: qual o motivo de todos os treinadores, salvo raras exceções como Paulo Autuori por exemplo, parecem que têm o mesmo discurso? Me parece que o profissionalismo ainda não chegou à maioria dos treinadores, e eles não servem de exemplo para os jogadores. E outra questão: por que os treinadores no Brasil não fazem alterações táticas na equipe como se faz muito na Itália? Em um jogo se usa um 4-4-2, no outro 3-5-2… Que acontece aqui que é sempre 4-4-2, e acabou ?

CC: A questão é um pouco complexa, então vou responder por partes. Na minha opinião, as novas levas de treinadores representam um progresso em relação ao passado. Hoje há pessoas mais preparadas, pessoas que têm um conhecimento maior. Mas então por que não usam este conhecimento? Primeiro: o tempo de treinamento é muito escasso; segundo: a cobrança sobre o treinador é muito severa. Se algo dá errado, é muito mais fácil mandar embora o treinador do que mandar metade do elenco. Mas por que não muda?

Outro dia eu conversava com o Scolari e dizia a ele que a figura do goleiro parado no gol não existe mais, porque senão você tem um homem a menos do que o adversário. O exemplo mais claro é o Van Der Sar na Holanda e no Ajax. Quando há algum problema, a bola é atrasada para ele para não para dar um chutão, e sim para se iniciar uma jogada. Porque você não faz isto com o Veloso? Ele me respondeu muito coerentemente dizendo que o Veloso tem muitas qualidades, mas para fazer isto seria necessário muito treino para que ele ganhasse confiança. Sem treino, o máximo que ele pode fazer mesmo é dar um chutão para frente. Voltamos então para o velho problema do calendário. Se você tem, uma pré – temporada, pode-se usar 10 dias para variações táticas; se você só joga aos domingos, pode usar o treino da Quinta por exemplo para dar um treino tático, ou então chegar para um jogador tipo o Cléber e falar:” …olha você vai ter de aprender a cabecear…”, porque embora ele jogue na seleção brasileira, ele não sabe. E daí em diante. Outro problema é a resistência do jogador que pensa que só pode render bem em uma posição, e cria caso para sair de sua posição. Como o que acontece com Marcelinho Carioca, que se recusa a voltar para marcar. Ele não entende que se não marcar, o time tem um homem a menos no meio de campo. Aí, ele não marca, ou volta de má vontade e não faz porra nenhuma, ou pior, fica jogando a torcida contra o treinador…”tá vendo, não fiz gol porque o treinador quer que eu fique na marcação…”. Por isso que eu digo que jamais seria treinador, porque eu mandaria o jogador a m… ou então iria embora.

Trivela: Eu reparei observando o treino de uma escola de crianças inglesas que o treinador tinha um menino de 14 anos ,volante que também jogava de zagueiro. Mais: o treinador mudava os meninos de posição durante o jogo para que os meninos tivessem noção das posições no campo. No Brasil não existe uma discriminação quanto a essas mudanças de posição mais radicais no campo ?

CC: Tem. No Brasil, como eu já disse, o jogador não gosta de jogar fora da posição original dele porque acha que rende menos, aparece menos…

Trivela: … e ganha menos.

CC: …e ganha menos. Também tem um pouco a idéia de que o jogador que atua em várias posições não atua bem em nenhuma. Cito o exemplo do passado do Lima no Santos. Por ser um coringa, ninguém lhe dava valor, mas para mim era um ótimo médio de apoio. Como esta posição era fechada pelo Zico na seleção, não tinha chance.

Trivela: Voltando à praga dos dirigentes, como o Sr. vê a possibilidade da lei Pelé de alterar o quadro de amadorismo no futebol nacional? Até que ponto ela será eficiente ou não?

CC: Não sei, porque o Brasil tem uma coisa das leis que pegam e das leis que não pegam. Tomara que pegue. A verdade é que com a fauna de dirigentes incapazes uns, desonestos outros e incapazes e desonestos outros ainda, fica difícil uma mudança radical.

Trivela: Havendo uma profissionalização, o Sr. crê que o nível da imprensa esportiva melhoraria junto, forçosamente ? Essa observação é em cima do fato de que muitos profissionais sequer dominam bem o português, que dirá de se atualizarem em relação ao resto.

CC: Não resta dúvida. Eu entendo que mais cedo ou mais tarde o futebol brasileiro vai ter de adotar a figura do “manager”…

Trivela: Como o Alex Ferguson no Manchester United…

CC: …sim, poderia ser alguém como o Brunoro, por exemplo. Seria um profissional que se dedicaria 100% ao clube, e não como acontece hoje que o diretor aparece só em um período, quando é possível. Porque eu enxergo a coisa da seguinte forma: um presidente, que é quem manda, eventualmente que seja acionista do clube, um manager, e um técnico. Aquele “ diretor de bocha” que vá dar palpite …como aqueles corneteiros do Palmeiras. Eu nunca me esqueço de quando eu estava na rádio Bandeirantes, e no começo da década de 60 veio aqui jogar o Real Madrid. Fomos ao Rio, e num dado momento, nos encontramos com o médico do Real e um de nossos repórteres perguntou um detalhe sobre a escalação. O médico polidamente respondeu que qualquer  informação sobre a condição médica dos atletas, ele daria com todo prazer, mas que sobre a escalação, somente o treinador, para surpresa de todos os profissionais brasileiros. O que acontecia é que na verdade ele, já naquela época, tinha muito bem divididas as  funções, responsabilidades e obrigações de cada um.

Trivela: Retornando ao assunto dos treinadores. Nos últimos anos surgiu um novo ‘starlet’ que é o Luxemburgo, agora na seleção. Na sua opinião ele é realmente um treinador melhor do que os outros, ou é apenas um marketing mais bem feito de sua parte?

CC: Eu não acho que ele seja melhor do que outros. O coloco no mesmo patamar do Scolari, Nelsinho Batista, Leão, Autuori. Talvez uma ou outra diferença, mas no geral, estão no mesmo nível. Só não resta dúvida, como em todas as profissões, que o Luxemburgo sabe vender o seu peixe. Vendeu muito bem, superou problemas, como a saída do Santos, que o prejudicou um pouco, mas ele tem um sentido de relações públicas muito bom, exatamente o que faltava ao Zagallo. Tivesse o Zagallo a décima parte deste sentido de relações públicas que tem o Luxemburgo ,ele teria estátuas em praça pública, tal foi o retrospecto de sua carreira, extremamente feliz. Mas quando, depois das vitórias, ele vinha com aquele “…vocês vão ter de me engolir…”, sabe…

Trivela: O Sr. crê que mesmo a Seleção tendo trocado somente a folhagem, mas estando com a mesma árvore, possa haver mudanças significativas? Como deve se comportar a seleção nos próximos quatro anos?

CC: Por ser fundamentalmente otimista, acho que a coisa melhora, até porque piorar era impossível. A análise principalmente desta última seleção, deixou claro, mesmo para os cegos, que o Zagallo não sabe mexer no time. Já era hora de oferecer um jantar de despedida, dar um obrigado, e fazer uma limpeza. Espero que as coisas mudem. Algumas, negativas, já ficou claro que não vão mudar, como por exemplo a interferência da Nike. Quando eu vi em Johannesburgo a placa escrito “Brazil World Tour”, porra aquilo me lembrou muito os Harlem Globetrotters, ou o Michael Jackson. Não é por aí que se trabalha. Outra coisa é a presença de alguns dirigentes que ficaram na CBF, que deixam dúvidas. A saída do Gilberto Coelho me pareceu muito um caso de pessoa que não se enquadrou em algum esquema. Mudaram as moscas, mas o resto…Mesmo assim, entendo que tenha um material humano muito bom.

Trivela: Que nomes o Sr. destacaria ?

CC: Gosto do Fábio Jr, Alex…Alguns precisam ser vistos sob outro contexto. Por exemplo, as vezes que eu vi o França, me deixou uma boa impressão. Mas precisariam inclusive de testes na própria seleção. Além dos que estão fora, como o Anderson, e tantos outros.

Trivela: E o Rivaldo? Porque não consegue ser na Seleção o Rivaldo do Palmeiras, ou o Rivaldo do Barcelona?

CC: Porque tem uma função tática diferente.

Trivela: Não haveria um problema de peso da camisa, por exemplo?

CC: Não creio. É necessário que se adapte o esquema às qualidades dos jogadores. Na Roma, quando o Cafu desce, tem um na sua cobertura. Na Seleção, ninguém cobria. Então ele não descia, com medo de ser o culpado de qualquer coisa. Não é admissível escolher um esquema de jogo, e depois encaixar os jogadores. Tem que acontecer o contrário. Se seu ataque é de homens baixos, não adianta explorar cruzamentos; se são bons cabeceadores, o treinamento dos cruzamentos é vital…

Trivela: Apesar da obviedade da pergunta, como o Sr. viu o Brasil na última Copa, e da Copa como um todo.

CC: Do Brasil, fiquei decepcionado. Mesmo conhecendo os problemas, sempre resta a esperança de que uma hora a coisa engrene, e nunca engrenou, nem mesmo contra a Holanda. Só que se o Kluivert acerta o pé, a Holanda ganhava com facilidade. Teve no mínimo cinco chances claras. Eu vejo o Zagallo como grande culpado, mais do que os jogadores; e pela primeira vez desde 1930, vimos uma seleção ganhar a Copa sem ter ataque. Porque se juntarmos Trezeguet, Guivarc’h, Dugarry e Henry, não dá um bom jogador sequer. E graças a Deus.

Trivela: Quem o Sr. destacaria na Copa, como o grande jogador?

CC: Zidane, indiscutível; o Owen um belíssimo jogador; me decepcionou um pouco globalmente a Argentina, eu esperava mais; o Vieri, eventualmente, coitado, jogando sozinho…

Trivela: Sem sombra de dúvida que o caso Ronaldo foi o que mais deu o que falar na Copa, talvez mais até do que a própria vitória da França. Sabemos que o Ronaldo pode não ser um gênio, mas também não tem um QI de molusco. O Sr, acha que houve uma imposição para que ele jogasse de qualquer maneira a final?

CC: É difícil fazer conjecturas, mas é fato que a Nike tinha Ronaldo e Del Piero. Del Piero fracassou de forma clamorosa, então ficaram com Ronaldo. E a Adidas tinha Zidane. Se o Ronaldo não joga, era entregar de bandeja o negócio para a Adidas, resultado que seria amplamente utilizado no marketing. Eles então devem ter imposto: estamos pagando, o Ronaldo joga. Sei lá, vai que ele faz um gol, depois é substituído, enfim…

Trivela: Eu acho que o Ronaldo tem de ser operado. O Sr. diria que esta é uma afirmação procedente ?

CC: Outro dia conversei com o médico do Cruzeiro. Ele dizia que pelo retrospecto, não haveria problema nenhum. Ele disse que tentou algumas sondagens para descobrir informações, mas não conseguiu nada. O que houve foi um aumento de peso, que com esta onda de doping levanta a hipótese do anabolizante. A única coisa clara é que eles estão tentando desesperadamente não operar, tanto é que o Filé (fisioterapeuta carioca) foi para lá. Porque um ‘stop’ de seis a oito meses, como este que o Del Piero deve fazer é um grande prejuízo técnico e financeiro.

Trivela: E ele volta a ser o Ronaldo de antes?

CC: Sabe Deus. Acho que mais para sim do que não, mas eu torço para voltar

Trivela: Na Internazionale não falta um companheiro para ele, além do Baggio, que pudesse trazer uma clarividência àquele meio-campo, alguém como um Rivaldo, Bergkamp,  Zidane? Por que quando Ronaldo não está em uma jornada das mais inspiradas, tudo fica cinza naquele setor cheio de volantes como Winter, Paulo Sousa, Cauet…

CC: A Inter tem dois titulares absolutos somente: Ronaldo e o arqueiro Pagliuca. Ela tem um problema defensivo. Tem Giuseppe Bergomi, que tem 35 anos, e por isso só pode jogar de líbero, e com uma autonomia limitada, não pode sair muito. Então, Bergomi mais três defensores. Você já perdeu um cara no meio – campo. Se você não tem bons marcadores no meio – campo, você tá roubado. Se você puser ao mesmo tempo Ronaldo, Zamorano, Baggio e Paulo Sousa, sobretudo jogando em casa contra um time pequeno. Contra o Bari em San Siro, você perde o jogo. Por que? Porque o cara joga fechado, quebra teu time no meio, e no primeiro contragolpe mete um gol, acabou.

Trivela: Mas a culpa não é do treinador? Porque a Inter tem uma grande disposição para comprar jogadores famosos.

CC: Ele recebeu os ingredientes, e a ordem ”agora faça o prato”. Provavelmente se ele tivesse de comprar 29 jogadores, não compraria aqueles. Comprava um grande cara no meio – campo, que não tem; comprava um grande defensor, que não tem. Ë claro eu é um pouco teórico, mas imagine este time da Inter com Beckenbauer no lugar de Bergomi, e Gerson no meio – campo. Muda completamente o time.

Trivela: Numa análise de um comentarista da RAI, após a derrota de 5 x 1 para a Lazio, ouvi a seguinte argumentação: a defesa só melhora com muito trabalho, e treino, ao longo do tempo. No ataque, basta comprar um jogador como Ronaldo, para que as coisas melhorem da noite para o dia.

CC: Não resta dúvida

Trivela: …e, dizia o comentarista, Luigi Simoni já teve este tempo.

CC: Só que ele não tem grandes jogadores. Vendo friamente: Mickael Silvestre. Até acho que tem futuro, mas não tem presente, nem muito menos passado; Javier Zanetti. Um carregador de bola, mas quando vai lançar é um desastre; Simeone. Importantíssimo, mas já começa a ter uma certa idade, além de não ser um craque, não é um Redondo. Tudo isso, mais a cobrança de uma equipe que gastou milhões para ganhar títulos. Veja bem: a temporada passada não foi má. Ganhou a Copa UEFA, ficou em segundo no Italiano, venceu o Milan no derby…só que para eles foi um fracasso.

Trivela: Nada foi oficializado mas Marcello Lippi deve ser o treinador da Internazionale na temporada que vem. O Sr. vê o Ronaldo com melhores condições em um time montado por Marcello Lippi, um time mais arejado, para que o brasileiro e Baggio se sintam mais a vontade ?

CC: O Lippi, milagre não faz. Se ele tiver jogadores, muito bem. Se ele tiver um Zidane, por exemplo, aí sim. Eu já vejo um entrave na ida dele para a Juventus no seu salário, que é muito alto. Outra coisa, são as pretensões de se mudar o elenco, não acredito que ele vá para a Inter com estes jogadores.

Um outro ponto é saber até onde a exasperação do trabalho do preparador físico Ventrone é responsável pelo trabalho da Juve. Você vê que raramente um jogador vendido pela Juventus tem vida longa, são “limões espremidos”. Se tem a impressão de que eles tiram o máximo, mesmo do ponto de vista de doping, e depois tchau, um abraço. Tirando o Paulo Sousa, e o Torricelli, pouquíssimos ex – Juventus foram muito longe.

Trivela: Ainda em Milão, temos outra grande equipe que não se encontra já há algumas temporadas. Alberto Zaccheroni inicia uma nova fase no Milan?

CC: Que ele inicia uma nova fase, não tenho dúvidas. Se esta fase atingirá os mesmos resultados daquela grande equipe de Arrigo Sacchi, não sei. Ele já está em uma boa situação no sentido de que mesmo sem conseguir um entrosamento de seu time, está em segundo lugar no campeonato. Como a Inter no ano passado, jogava mal, mas vencia. Se ele convencer Weah a jogar na direita, se arrumar o meio – campo, sobretudo se Leonardo se recuperar rápido desta pubalgia, daí não será mais necessário se exigir do velho Donadoni que melhore o setor. Jogadores como Albertini e Maldini caíram de produção nos últimos anos. Não se tem mais Baresi lá atrás. Maldini, em particular, deve ter seu futuro na seleção apenas se for de central. Zoff não o quer mais na lateral. Tudo isso, mais os problemas de dinheiro, vaidades pessoais, etc.

Trivela: Alguma carência mais específica no Milan? O Milan não está satisfeito com o terceiro atacante, nem Ganz nem Guglielminpietro satisfizeram, tentaram comprar o atacante ucraniano Shevcenko…

CC: …que custa caro para burro…

Trivela: … e que provavelmente será a prima – donna da próxima temporada.

CC: Eu acho que eles precisam de um grande central, ou então que sarasse de vez o André Cruz, que nem no banco tem ficado. Se o André Cruz se fixasse como líbero, provavelmente até o Costacurta melhorava de rendimento. É ali que começam todos os problemas do Milan.

Trivela: Essa queda de rendimento nos últimos três anos foi mesmo o final de um ciclo, do supertime de Van Basten?

CC: Foi. Veja que nas últimas três temporadas, o Milan teve quatro treinadores, Tabarez, Sacchi, Capello e agora Zaccheroni. O elenco era formado por jogadores qu não eram mais novos, tinham ganho tudo, e completaram seus ciclos

Trivela: Outro time que gastou os tubos foi a Lazio, gastou US$ 110 milhões…

CC: …para desfazer um time que já estava pronto…

Trivela: …gastar tanto não é irresponsabilidade, coisa de novo – rico que entra na loja e leva um de cada cor ?

CC: Você usou a palvra certa: novo – rico. Quem é Sergio Cragnotti? O seu aparecimento no mundo das finanças italianas mostra isto. Ele era o braço – direito do Terruzzi, que depois se suicidou. Aí então fez um império. Como o dinheiro é dele, compra e vende quem bem entende, muitas vezes erradamente. E vire – se o treinador. Ocorrem erros de avaliação. Está clara na minha memória a declaração de Marcelo Salas após o jogo contra a Itália em que ele afirmava que marcaria muitos gols porque as defesas italianas eram fracas. Coitado. Além de falara bobagem, ele nem foi contratrado para ser o homem  – gol.

Aí entra o azar. Praticamente todos os contratados se machucaram ,e em alguns setores, não tem ninguém. Por exemplo: o Eriksson teve de inventar o Mancini como segunda ponta, pra jogar com Salas. É muito difícil acertar nestas condições, principalmente se somando a cobrança exagerada do Cragnotti, do Velasco que era o treinador italiano no vôlei e agora é o manager da Lazio, e quer justificar a fortuna que ganha de salário.

Trivela: Na Itália se tem muito a noção de que na primeira temporada é muito difícil acertar o time…

CC: Pode até dar certo, mas o normal é que somente na terceira temporada o time realmente estoura. Se a Lazio tivesse pego o time do ano passado, e comprado dois  jogadores ou três, como o Vieri e o Salas, estariam com o time pronto.

Trivela: Mandaram embora o Jugovic…

CC: Por que mandaram embora o Jugovic, que era um puta jogador? E ainda deram azar, de jogadores machucarem como Nesta, De La Peña…se bem que o De La Peña nunca chegou a jogar bem mesmo. As vezes o time contrata o jogador que joga bem em um time, e quando chega , nada. A Fiorentina contratou o Amor, do Barcelona. Está na reserva. Pensava que ia ser titular absoluto. Quantos jogadores saíram do Ajax e não deram certo?

Trivela: A Fiorentina, o seu time de coração, com o Trapattoni, um vencedor, agora vence o estigma de time médio?

CC: O primeiro estigma que eles conseguiram vencer, que já foi extremamente importante, foi convencer os jogadores de que seria possível ganhar o título. Outra coisa foi convencer o presidente Cecchi Gori, um pouco como o Cragnotti, que só gostava de comprar centroavante, sem ver que tinha uma defesa patética. Compraram o Repka, o Heinrich, o Torricelli e se não é uma defesa do outro mundo, não compromete. Não acho um timaço, mas ainda pode melhorar, e se não ocorrer um grande imprevisto, pode até ganhar. Mesmo assim, acho que o projeto para se ganhar o título é para daqui a dois anos.

Trivela: A Fiorentina conseguirá domar o Edmundo até o fim do ano, quando ele deve voltar para o Vasco da Gama?

CC: A grande sacada foi justamente convencê – lo de que ele poderia ganhar o título. Outra coisa foi fixar o passe em US$ 15 milhões, e deixar a segurança de que após a temporada, se ele não se adaptar, pode ir embora. Antes disso realmente era uma situação delicada. A participação do treinador para convencer Edmundo a ficar foi decisiva. E até a torcida entendeu que se havia alguém que poderia dar à Fiorentina este salto de qualidade seria Edmundo.

Trivela: O Vasco fazendo negócios incríveis. Vendeu o Edmundo por US$ 7 mi, agora vai comprar por US$ 15mi…Um time que eu via como favorito era a Juve, mas agora fiquei na dúvida após a contusão do Del Piero…

CC: A Juve deu sorte nos últimos anos quando vendia jogadores chave, e os repunha com outros mais baratos. Vendeu Vialli, comprou Vieri ainda novinho da Atalanta, e num dado momento, ele explodiu; aí vendeu Vieri por uma fábula, e comprou da mesma Atalanta o Inzaghi, jogador de características diferentes, sem presença física na área, mas que tem habilidade e sai muito bem do impedimento, e novamente deu certo. Comprou o Davids como refugo de fim de feira, e ele voltou a ser o grande Davids do Ajax. Mas não se faz treze pontos na loteria todo dia, chega um dia dá errado. Este ano não reforçaram consideravelmente o time. Agora perderam nomes importantes como Ferrara, Del Piero. Aliás, Del Piero já não joga bem há tempos, mas preocupava dentro da área

Trivela: A Lei Bosman foi positiva para o futebol europeu?

CC: Foi excelente para os jogadores, mas colocou em uma situação secundária as seleções nacionais. Hoje caminhamos para uma situação na qual teremos grandes clubes, e as seleções serão vistas como algo incômodo, mas inevitável devido à tradição.

Trivela: O Sr. vê favoritos no Italiano, ainda na décima rodada?

CC: Não. Qualquer um dos grandes, como Parma, Milan, Fiorentina, Roma , e até Lazio e Juventus ainda tem chances.

Trivela: A questão do doping é profunda ou não?

CC: É muito profunda, e acredito que terá conseqüências, envolvendo muita gente. Como todas as coisas que envolvem a justiça na Itália, as punições vão demorar, mas acredito que sairão. Médicos, laboratórios, todos estão sob suspeitas. Até mesmo o presidente da federaçõ, Nizzolla está sendo investigado. Embora o Zeman (treinador da Roma) tenha sido infeliz em algumas declarações, sua posição é válida. Não podemos admitir que enquanto em outros esportes, o doping está sendo atacado, no futebol é tratado como se nada acontecesse. Era ingenuidade crer que o futebol seja uma ilha feliz.

Trivela: E a seleção de Zoff?

CC: Muita coisa não muda, porque é uma continuidade dos campeonatos. Mas sobretudo, pelo fato de que os calendários não favorecem o trabalho das seleções, e os clubes vêm as convocações como algo inconveniente.

Trivela: A Superliga?

CC: O caminho forçoso do futebol. Quando deixou de ser esporte para ser espetáculo, passou a obrigatoriamente de seguir este caminho. Costumo dizer que seria esporte se ao invés de 22 jogando e 40.000 assistindo, fossem 40.000 jogando e 22 assistindo. Como o investimento é altíssimo, bilheterias já não são a parte mais significativa da receita, este é o caminho mais óbvio. Acredito que dentro de alguns anos, surja um campeonato europeu, uma liga européia. Se participarem 18 times, só acontecerão clássicos.

Trivela: Mas aí o futebol não corre o risco de se deixar de ser um esporte, com manipulação clara de resultados, e etc?

CC: Eu temo que o futebol se torne algo como o boxe nos Estados Unidos. Um show de TV. É mais difícil, porque são 22 pessoas em cada partida, ao invés de 2, é mais difícil a conivência de tanta gente.

Trivela: A FIFA vai sumir?

CC: Não, mas vai perder muito poder. Terá um papel mais figurativo do que hoje.

Cassiano Gobbet
Cassiano Gobbet é jornalista, formado pela Universidade de São Paulo e mestre em jornalismo digital pela Bournemouth University.
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