‘Meat is Murder’, 30 anos depois

Na Grã-Bretanha de 1985, a vida era cinzenta como as minas de carvão do norte da Inglaterra. Após seis anos sob a égide Margaret Thatcher, as privatizações tinham afetado em cheio o ‘welfare state’ do pós-guerra. Os níveis de desemprego atingiam seu maior nível desde a década de 30 e os adolescentes e ‘young adults’ do país passavam por um momento de desesperança e falta de estímulos. O movimento punk perdera a força e entregara o cenário pop a um marasmo inédito pelo menos desde a década de 50. No mesmo dia em que Maggie Thatcher completou seu sexto ano de governo, 11 de fevereiro de 1985, um grupo de Manchester lançou seu segundo disco após uma estréia pouco empolgante, com o homônimo “The Smiths”. O novo trabalho, “Meat is Murder[contextly_sidebar id=”rcVB40NIrFcjLpVjp7xHn5uVimbaNaAn”]” seria o alicerce para a música pop dos anos 80 na ilha.

‘Murder’ foi, antes de mais nada, um grito contra a opressiva política conservadora da ‘Dama de Ferro’ (que viria a ser ‘premiada’ com uma música só sua, ‘Bigmouth Strikes Again’ no ano seguinte em “The Queen is Dead”). O vocalista Morrissey tinha vindo de experiências musicais tão insossas quanto os anos thatcheristas, ambas com o guitarrista Billy Duffy (que depois formaria o The Cult). Com esse ‘spleen’ simbolista, ele ilustrou o momento deprimente de uma falta de perspectivas cheia de desespero.

The Smiths - Meat is murder (picture 1985) | Flickr - Photo Sharing!
Capa do LP “Meat is Murder”.

O fã da ‘cult band’ The Cramps, Morrissey teceu nas letras de ‘Murder’ alguns dos maiores clássicos do pop inglês de todos os tempos e foi embalado por um cuidadoso trabalho de composição e produção. Insatisfeito com a produção do álbum anterior (cujas faixas viriam a ter inúmeras regravações que tornariam-se disputadas a tapa na era pré-digital do vinil), Marr só quis um engenheiro de som e conduziu todo o trabalho, da execução à mixagem. Mesmo que você seja um fã de Smiths, provavelmente não ouviu todas as versões das diferentes músicas do álbum de estréia (o livro “Songs that Saved your Life” narra os detalhes de cada uma delas)

Os Smiths romperam com a tradição musical da cidade que era a herdeira do movimento punk e que tinha se seguido com os Buzzcocks, Joy Division e posteriormente o New Order e a cultura ‘rave’ do La Hacienda de Tony Wilson. Fortemente melódico, o tempero dos Smiths era costurado por um sem-número de guitarras, mesmo não sendo Marr um virtuoso no instrumento. A falta de requinte técnico era compensada com uma incrível capacidade de lapidar canções simples, com um DNA pop quase mundano, deixando-as com um nível de refinamento único. Nenhuma ‘guitar band’ das gerações seguintes de Manchester e da Inglaterra ignoraria os timbres e compassos de Johnny Marr, bem como as equivalentes americanas. Completamente acústico e com as primeiras gerações de ‘samplers’ e dos sintetizadores ‘modernos’, ‘Murder’ é uma ruptura com as referências de gravação dos anos 70 e uma introdução de um novo padrão, que perduraria por décadas na Europa e EUA.

A atmosfera de ‘Murder’ é a mesma de uma tarde cinzenta na impessoal Manchester (que Mark Twain já tinha classificado como equivalente à morte no século anterior). O disco não chega a ser sombrio, mas é gélido e cheio de paixão ao mesmo tempo. Morrissey, apesar da ainda restrita fama, já era uma personalidade que beirava o insuportável, ditou o ambiente do álbum, chegando ao ponto de proibir os outros membros da banda de comerem carne em público.

Gay assumido numa Inglaterra vetusta, não só empunhou bandeiras como o vegetarianismo, contestação da educação formal repressiva, anti-belicismo e ‘brokenheartedness’. Ele espancou o ouvinte discordante com tais conceitos (que ficariam ainda mais estridentes com o sucessor ‘The Queen is Dead’). Assim como seu ídolo Oscar Wilde, também gay e agredido pelo status quo vitoriano, Morrissey embalava pancadas em pacotes cheios de uma ironia ácida e inteligente que trouxe de volta um ‘ethos’ britânico sufocado pelas duas décadas anteriores. A invocação a Wilde não deixaria mais o trabalho dos Smiths.

Desesperado sim, mas profunda e intimamente emocional e apaixonado, ‘Murder’ traria ao público uma das canções de amor mais marcantes do pop, “How Soon is Now”, que desde o primeiro minuto virou um ícone pop, com regravações, menções, colagens e reinvenções diversas. How can you say I go about things the wrong way? I am an human and I need to be loved, just like everybody else does.

Os restos do cadáver da Inglaterra vitoriana que sobreviviam pelas mãos de uma sádica Thatcher eram outro alvo de Morrissey (“The Headmaster Ritual” e “Barbarism begin at Home”). Tudo o que a nova Inglaterra órfã do punk precisava era alguém para abrir as portas da contestação ao mundo abjeto que o governo impunha ao país, uma declaração de uma piada que não tinha mais graça (“That Joke isn’t Funny Anymore”) e até mesmo uma condenação à verve beligerante do thatcherismo, que tinha entrado em guerra com a Argentina três anos antes.

A aversão à exposição pública que não diretamente ligada à música fazia dos Smiths um animal difícil para a mídia. Marr e Morrissey, ambos nascidos na área metropolitana de Manchester, eram difíceis de entrevistar e odiavam fazer videoclips. Seu potencial criativo, no entanto, não tinha como ser ignorado pela indústria e louvado como um benchmark da música na ilha (o agitador cultural e jornalista Tony Wilson, apresentador do musical So It Goes nos anos 70, disse que seu único arrependimento tinha sido não ter lançado os Smiths).

A irascibilidade que impulsiona o gênio de ambos e a intransigência xiita de Morrissey em ‘Murder’ foi a mesma que levou a banda ao seu fim menos de quatro anos depois. ‘Murder’ resta, contudo, como o marco definitivo de um novo ciclo no ‘britpop’, o último antes da era digital. Os 30 anos do álbum vêm num momento em que a música pop britânica não está no fundo do poço, mas aparentemente sem rumo, novamente com um governo conservador escroto e repressivo, tateando no escuro, à espera do surgimento de um novo “Meat is Murder”.

Cassiano Gobbet
Cassiano Gobbet é jornalista, formado pela Universidade de São Paulo e mestre em jornalismo digital pela Bournemouth University.
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