Quando a visão de mundo não passa da metade do umbigo

Um cidadão entrou numa loja e comprou um Rolex, top de linha. Comprou porque podia – tinha o inalienável direito de fazê-lo. Decidiu, então, que iria passear com seu Rolex caríssimo no bairro mais violento da cidade – por que não, se ele tinha esse direito? Lá chegando, à noite, alegremente cantava nas vielas que tinha seu Rolex e ninguém poderia impedi-lo. O inevitável aconteceu e ele foi assaltado, apanhando severamente no processo. Apoplético, chamou todas as divisões policiais que podia e exigiu que elas garantissem seu direito de andar com um Rolex no bairro mais violento da cidade. Essa história tem eco na realidade: é exatamente como o mundo abraçou o frenesi desenfreado causado pelo ataque ao ‘Charlie Hebdo’: um exercício extremo da liberdade de expressão que acabou dando merda.Não, os dois ‘losers’ que invadiram a redação do ‘Hebdo’ e fizeram a carnificina não tinham “o direito” de ir lá vingar sabe-se quem. O ponto é outro: poder fazer uma coisa não significa que fazer essa coisa seja uma boa ideia. O peso das sátiras com os ícones religiosos muçulmanos aumenta desde 2005, quando o Jyllands-Posten, da Dinamarca, fez sua série de 12 cartuns. De certa forma, foi o crescendo lógico posterior aos “Versos Satânicos” de Salman Rushdie, que lhe valeram uma fatwa do Aiatolá Khomeini. Desenhar Maomé é o modo mais fácil de ganhar exposição.

Na história, raramente conseguimos interpretar momentos dramáticos com alguma lucidez. Pare para pensar: a I Guerra começou com o assassinato de um aristocrata por um radical; Bismarck trouxe a França para uma guerra com uma carta falsa; os EUA fizeram uma invasão que custou mais de US$ 1 trilhão e pelo menos 1 milhão de iraquianos mortos por conta de uma mentira a respeito de armas químicas. A opinião pública dificilmente toma as melhores decisões quando pega de sopetão. Posteriormente, dá para ver o tamanho das idiotices que deixam sua marca.

Wolinski, Charb e todos os membros do Hebdo não eram gênios (talvez Wolinski mereça um espaço acima dos demais por conta de sua história e coerência). A tiragem da revista – 60 mil exemplares – deixa claro como era limitado o raio de ação de sua produção. O problema jaz no fato que o risco assumido pelos autores, baseados em todas as suas certezas republicanas, liberdades, igualdades e fraternidades eram vistos sob um viés completamente maniqueísta. Assim como os jumentos Kouaichi não representam o Islã, também as insânias dos Al-Zarqawis da vida também não são significativos dos 1.6 bilhão de muçulmanos no mundo. Cada vez que Maomé era desenhado, uma ofensa a esse bilhão de pessoas era feita, independente do que elas pudessem ter feito.

Entra a pergunta: é tão grave assim desenhar Maomé? . O Ocidente deu a essa pergunta a resposta que quis, mas, infelizmente, ela não pode ser dada por um não-muçulmano. Certamente, para milhões de islâmicos, um cartum representa pouco, mas para todos, o preceito tem um significado. Fazer asserções ‘imparciais’ sobre o assunto sem ser o ‘ofendido’ é como alegar que piadas de negros, gays ou judeus não ofendem. Como diz Guy Franco num post seu no Yahoo, “cabe a mim, e a mais ninguém, dizer com o que eu me sinto ofendido“.

Se fôssemos avaliar pelos últimos 15 dias, diríamos que a liberdade de expressão é o valor fundamental do Ocidente, aquele pelo qual guerras são travadas e mártires morrem. Não parece que este é o mesmo mundo no qual a NSA criou o maior sistema de vigilância da história da humanidade. Não parece o mesmo mundo no qual um jornal hackeou milhares de telefones para bisbilhotar na vida de figuras públicas para ter mais audiência. Não, este mundo não é o “mercado de idéias” ao qual John Stuart Mill se referia onde todas as idéias – mesmo as mais odiosas – têm direito de ser discutidas (algo que Noah Chomsky trata no seu livro Manufacturing Consent – “se você acredita em liberdade de expressão, precisa aceitar opiniões que você abomina – na verdade, essas são as ideias que você mais precisa aceitar).

Este mundo – o nosso mundo – estabelece limites. E, sem exceção, esses limites são impostos pelo status quo – mesmo aqueles limites que estão dentro do razoável como proibir incitação ao ódio ou negação do holocausto. O Ocidente manufatura verdades como o patético “mapa do terrorismo” criado pelo “jornalismo” do Fantástico (expressão essa – “jornalismo do Fantástico” já bastante eloqüente). Dificilmente o Fantástico, uma TV francesa, israelense ou de outro povo “amante da liberdade de expressão” apresentaria um programa como o que conta como o Estado Islâmico nasceu dentro das prisões americanas no Iraque ou dos crimes de guerra israelenses na Faixa de Gaza ou ainda como o domínio colonial belga está diretamente ligado ao genocídio em Ruanda. Essas são histórias que não são contadas porque a repressão à liberdade de expressão não se dá só com a censura aberta, mas  – principalmente – de outros modos.

O bizarro cenário de fanatismo islâmico existe, sem dúvida. Em nome do Islã, mata-se com pavorosa frequência (vale lembrar que o mesmo tipo de retórica fez com que a Igreja Católica passasse oito séculos tentando matar muçulmanos). O ataque ao Charlie Hebdo obviamente não se justifica nem se absolve. O que é questionável é o rompante democrático que o mundo aparentemente deu, em sua grande maioria apontando dedos para o Oriente Médio e outros países muçulmanos. A liberdade de expressão defendida nas passeatas só existe nos Fantásticos da vida.

Some-se a isso o fato de que todos os atritos que sempre existiram na história foram elevados à enésima potência com a mídia digital. Tudo acontece aqui e agora. Não há tempo para reflexões, não há paciência para discussão e não há dificuldade em se propagar qualquer tipo de atrocidade (e aí valem tanto as surreais ações do Estado Islâmico quanto o discurso de ódio da extrema direita americana). O ‘Hebdo’ tem seu espaço, mas foi tragado por uma polêmica boba e foi dilacerado por ela. O luto pela tragédia não pode encobrir a insensibilidade que se tem com valores básicos de outras culturas e menos ainda servir como palanque para patifes que orquestram assaltos sistemáticos à sociedade como alguns dos políticos na linha de frente da marcha em Paris.

O “mundo islâmico” (como se fosse possível enquadrar um bilhão de pessoas num grupo só) está sendo condenado mortalmente pelo seu radicalismo. O Hebdo explorou radicalmente os limites da liberdade de expressão (aqui, sem aspas), não raro, de maneira insensível em relação a valores de outras culturas. À luz dos acontecimentos, o radicalismo do ‘Hebdo’, celebrado pela patifaria oficial, valeu a pena ou foi só mais um excesso em nome de si mesmo?

Cassiano Gobbet
Cassiano Gobbet é jornalista, formado pela Universidade de São Paulo e mestre em jornalismo digital pela Bournemouth University.
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