Depois da terra arrasada

Tragédias são progenitoras de revoluções. Raramente há um momento melhor para se fazer transformações profundas do que depois de um incidente cujas proporções mudam o horizonte visível. No que diz respeito à Seleção, dificilmente seria possível desenhar um evento mais apocalíptico do que o ‘Mineirazo’ da Copa. A liberdade pós-apocalíptica é a única licença poética que faz com que a convocação de Dunga não seja bizarra, para dizer o mínimo.

Começando pelo começo: Dunga não é um mau técnico, porque Dunga não é técnico. Suas duas experiências tiveram vitórias ‘default’, porque vencer a Copa América com a Seleção e o Gauchão com o Inter se dão mesmo sem um treinador. A inexplicabilidade da sua escolha já foi esgotada em todas as mesas de boteco localizadas nas emissoras de rádio e TV e afins. Não é possível analisar a escolha de Dunga. Assim como as credenciais do gaúcho para o cargo, os motivos para a indicação dele também não fazem estão à disposição.

Digressão feita, a lista de Dunga tem menos absurdos do que a de Felipão. Ricardo Goulart, Diego Tardelli, Éverton Ribeiro e Danilo dificilmente se justificam. Os cruzeirenses ao menos contam com a boa fase do clube numa liga paupérrima, mas Tardelli é um jogador que, em seu auge, era medíocre – e seu auge já passou. Seu status no Atlético-MG deriva da pobreza de horizontes do clube, cujo sucesso na Libertadores provou o declínio técnico do torneio (comprovado com o vexame japonês no fim do ano passado).

Mas mesmo nas convocações de jogadores que não estão à altura do que se espera da Seleção, as mudanças de Dunga têm um álibi: não há no grupo de Scolari – Neymar à parte – um nome que tenha saído intacto da era polar iniciada com o meteorito alemão. Os expurgados como Júlio César, Fred, Bernard e Jô (esses últimos também filhos do auto-engano atleticano na Libertadores) dificilmente teriam um caso para se defender. Mesmo nomes com um histórico respeitável, como Marcelo e Daniel Alves passaram a ser descartáveis depois do desastre da Copa.

Pelo menos uma coisa pode ser dita: se fosse técnico, Dunga teria como escalar um time cujo desempenho recente poderia se explicar. Miranda e Filipe Luís (Atletico Madrid-ESP), Coutinho (Liverpool-ING) e Marquinhos (PSG-FRA) causam menos estranhamento do que as chamadas scolarianas já mencionadas. Um Brasil de Dunga poderia jogar sem ter de depender exclusivamente de um menino de 22 anos (que por mais talentoso que seja, não é Pelé). Rafinha (Bayern-ALE), Lucas Moura (PSG-FRA) e Hernanes (Internazionale-ITA) são ausências que podem despertar interrogações, mas, novamente, depois de um terremoto, a maioria das escolhas poderia ser justificada.

O grande problema com a Seleção permanece sendo na sua gestão como um todo. A sociedade não tem nenhum tipo de controle ou opinião na gestão da Seleção, com o poder amplamente distribuído nos bolsões de poder aristocráticos, numa triste semelhança com o poder político no resto da sociedade. Assim como a presidente Dilma escolhe incompetentes atrozes para seus ministérios como Edison Lobão e Marta Suplicy, a CBF elege profissionais medíocres para seus cargos como um agente de jogadores para cuidar das divisões de base, um técnico como Gallo para a seleção olímpica e o próprio Dunga, cujo desfecho na Seleção deve transformá-lo num ‘double loser’.

Análises técnicas e táticas a quatro anos da Copa são pouco além de inúteis, na melhor das hipóteses. Todos jogadores brasileiros próximos de uma troca de clube que envolva muito dinheiro nos próximos quatro anos devem ser chamados por Dunga – isso não será uma exclusividade dele. O ex-volante aceitou a oferta do cargo porque é a única alternativa que tem a um possível emprego no Oriente Médio ou comentarista para uma rádio local.

Dunga fez uma lista dentro dos limites do aceitável para o momento e acima das qualidades que ele próprio dispõe. Isso tudo, somado a uma entidade medíocre, com executivos e profissionais medíocres e, principalmente, no pior momento do futebol brasileiro (junto com a Copa João Havelange), lhe dá algum mérito. Pior para nós que continuamos sendo campeões inigualáveis do desperdício de talento e potencial. Eis uma categoria na qual técnico e CBF detém um talento raro.

Cassiano Gobbet
Cassiano Gobbet é jornalista, formado pela Universidade de São Paulo e mestre em jornalismo digital pela Bournemouth University.
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