O milésimo sinal de alerta veio num Panzer

…e o Brasil perdeu. Não foi somente uma derrota – foi uma sentença. Desde que a Fifa decidiu que a Copa seria no Brasil, a CBF e a Rede Globo colocaram o país de quatro e chantagearam tudo o que podiam. Obrigaram governos (em todos os níveis) a atender suas exigências para que esses pudessem ter a sua casquinha – e os governos cederam – todos. A chacina alemã, certamente a maior humilhação da história do esporte mundial, sentenciou a sequência de erros que CBF e Globo engendraram com a ajuda de Scolari, ao maior desastre esportivo possível (porque o desastre político, orquestrado por políticos de vários partidos, será muito pior). Delenda Est Brasilis foi a sentença brilhantemente executada pelos alemães. O Brasil precisa se desapegar de suas paixões e começar a enxergar a realidade fora da Matrix. Tudo está errado há muito tempo, mas a maioria de nós não quis ver.

Scolari fez tudo errado, desde o começo. Aliás, mesmo antes disso. A CBF escolheu para suceder Dunga um técnico medíocre, cujo currículo o habilitaria para dirigir um clube de segunda classe. Sua gestão foi permeada de convocações inexplicáveis, falta de esquema tático, ausência de liderança e despreparo generalizado, culminando em resultados que refletiam exatamente isso – um grande e imenso vazio malcheiroso.

Uma vez nomeado, Scolari manteve a ciranda de erros. Não percebeu nem as coisas mais simples, como a impossibilidade de jogar com dois laterais ultraofensivos com dois zagueiros centrais (uma lição que ele já tinha tido  – e aprendido – em 2002). Não se deu conta de havia muitos “jogadores de confiança” que mal servem para jogar o Brasileiro. Não percebeu que sua comissão técnica tinha pouquíssimas virtudes além da fidelidade a ele. Não conseguia ver que nem todo o brilho de Neymar daria conta de compensar um goleiro aposentado, um reserva do Tottenham, um mediano do Wolfsburg, um menino com meia temporada na Ucrânia (mais como reserva que titular) e dois centroavantes que podem ser craques em seus clubes, mas que não servem para a titularidade na Atalanta.

Enquanto isso, jogadores que claramente eram mais promissores ou que tiveram temporadas superiores na Europa, foram deixados em casa por conta o “grupo fechado”. Kaká não é mais o mesmo, mas era uma presença fundamental pela experiência. Miranda e Filipe Luís (Atletico de Madrid), Lucas Leiva e Coutinho (Liverpool) e Rafinha (Bayern) tiveram temporadas muito melhores dos que os homens de “confiança” de Scolari. E havia também Lucas Moura, que não teve uma boa temporada, mas que já mostrou em algum momento que sabe jogar bola – algo que era certo que Fred e Jô jamais poderiam fazer. Scolari montou um time sem um companheiro para Neymar, sem nenhum passador de bola, dois laterais sabidamente incapazes de marcar e um camisa 9 que era só razoável muito antes de estar visivelmente em fim de carreira. Sobre Neymar, de quem exigiu-se a salvação do país, fica a sensação de que é um menino extremamente desamparado, tanto sob o ponto de vista profissional quanto familiar, por mais absurdo que isso possa parecer.

Só que essa Copa não foi uma desgraça apenas por conta do risível trabalho de Felipão. Uma entidade comandada por um ex-membro da ditadura militar já distante de seu auge intelectual teve em Scolari e seu time o desempenho equivalente a seu ‘setup’ ultrapassado, oligárquico e reacionário. A verdadeira tragédia é a que construímos fora do campo. Estádios bilionários cujo custo foi multiplicado ao longo dos anos apodrecerão ao lado das obras inacabadas ou mal-feitas que vão nos lembrar pode décadas de como os políticos desta década abraçaram o estupro proposto pela Fifa em troca de apoio nas urnas. A derrota por 7 a 1 só serviu para que uma sociedade egoísta e em clara negação não tenha nem mesmo a efêmera sensação de sucesso que viria com uma conquista da Copa.

Mais uma vez, não dá para não falar da imprensa que, como faz sistematicamente, a cada quatro anos, deitou no leito da situação enquanto foi vantajoso e levantou-se ofendida quando a maré virou. A Rede Globo merece uma menção especial pela manipulação desavergonhada da Seleção como um produto seu, endossada por todo o ‘status-quo’ do futebol, finalizados com a assinatura de Ronaldo, provavelmente o brasileiro que mais explorou sua posição de ídolo para participar da curra coletiva da Copa. O Brasil foi tratado como uma garota de programa e, como sempre, é quem paga toda a conta.

O passeio de Panzer dado pela Alemanha é um violento lembrete de como precisamos, como país, de nos desapegar de paixões clubísticas e política para enxergar a realidade como ela é e parar de fingir que nosso time/partido é o mocinho da história. O país precisa de um ‘reboot’ que rompa com o passado, especialmente com os nomes que nasceram e cresceram dos frutos da ditadura, indo dos mais óbvios como Ricardo Teixeira, José Maria Marin, Sarney, Parreira até os aparentemente opostos ao golpe, como Lula, Serra, e Dirceu. Os filhos da ditadura nasceram dentro e fora do casamento e hoje, estão todos remando para o mesmo lado.

Já passou da hora do país procurar pessoas com futuro do que apelar ao passado. O país precisa de uma ruptura de verdade. Há décadas que grita-se arrogantemente como somos o país mais vitorioso na história do futebol. Nos últimos anos, habituou-se também a gritar que o país está no caminho certo (com qualquer voz contrária ganhando a pecha de “direitista”, “elite branca” ou qualquer outra estupidez). O 7 a 1 berrou, apoplético, na cara de quem não queria ver, que não adianta fingir que o rei não está nu. Mais cedo ou mais tarde, alguém vem nos provar que ele estava.

Cassiano Gobbet
Cassiano Gobbet é jornalista, formado pela Universidade de São Paulo e mestre em jornalismo digital pela Bournemouth University.

2 Comments

  1. Caro, de fato, a pergunta sobre quem assiste é similar à que inquire sobre quem elege os políticos corruptos. O governo é a cara da sociedade. Admitir que você mesmo é muito feio é uma tarefa que exige coragem, algo em falta na prateleira do supermercado Brasil.

  2. O nível de manipulação da Globo, em determinados momentos, lembra a Coreia do Norte, ou a propaganda do regime nazista.

    Mas quem é que dá audiência? Eles não botam uma arma na minha cabeça para me forçar a assistir suas palhaçadas.

    Como tu já disseste algumas vezes: o torcedor tem um mecanismo psicológico que só o faz acreditar naquilo que quiser. É como o paciente que não aceita o diagnóstico de uma doença grave, sempre achando que as coisas não estão tão mal assim…

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