A vitória da vocação para a derrota

O desastre brasileiro no Mineirão já vai longe – mais de duas semanas – mas ainda é tempo de se falar dele. Na verdade, apesar da maioria das pessoas não se dar conta, o jogo dos 7 a 1 é um evento histórico que gerará documentários, dissertações, livros e outras abordagens. Raramente as testemunhas de um evento histórico se dão conta de sua relevância na mesma hora. A história se consolida somente quando se transforma em passado e pode ser vislumbrada com um certo desprendimento.

O peso da Copa no Brasil era simples de se prever, desde que se conheça história. Qualquer observador inteligente sabia que os 64 anos que distanciavam a Copa do ‘Maracanazo‘ estavam acumulados nos ombros dos 23 jogadores e do treinador muito antes de sair a lista de convocados ou mesmo da posse de Scolari ou mesmo dos decrépitos entulhos autoritários que a CBF produziu. Os espaços que seriam preenchidos pelos protagonistas já estavam maturando há décadas e estava claro que seriam necessários 23 guerreiros e um líder para preenchê-los.

Uma breve digressão: dois anos depois da segunda invasão americana ao Iraque, o historiador americano William Polk (um republicano conservador assumido) lançou ‘Understanding Iraq’, uma pérola de conhecimento sobre a história da região, da Mesopotâmia atéos nossos dias, passando pela violenta passagem dos mongóis de Genghis Khan e explicando como a mecânica da violência esculpiu o imaginário dos povos da região.

Polk produz uma leitura simples, mas extremamente didática de como se formou a identidade dos muitos povos que ocuparam aquela área. Uma das conclusões de Polk é que Saddam Hussein, por mais cruel, sangrento e impiedoso que fosse, era um elemento estabilizador na região. Segundo Polk, não foi a violência que manteve o regime sunita de Saddam no poder, mas um profundo conhecimento histórico. Saddam controlou o Iraque por décadas porque sabia que somente um governante que invocasse a figura mítica do guerreiro implacável, capaz de enfrentar todos os males, conseguiria ser respeitado e temido na mesma medida, tornando possível um governo estável.

Polk conclui seu livro com a máxima de que quem não conhece a história está fadado a repetir erros do passado e diz que se a administração Bush tivesse alguém minimamente letrado em história, não deixaria a invasão acontecer, porque o país se desintegraria e arrastaria consigo todos os seus vizinhos. Vendo o que acontece hoje em toda a região, indo da Faixa de Gaza á Síria, a história se reafirma como a mais precisa profeta disponível.

A CBF é uma entidade nascida e mantida num ensopado oligárquico de corrupção, ignorância e incompetência. Comprovar isso não requer argumentos. Basta observar que, jogadores, alguns treinadores e alguns raros membros das comissões técnicas (como Moraci Santana, por exemplo) à parte, a entidade é um mantenedor de incompetentes, desocupados e bajuladores que, de outra forma, aguardariam a morte na fila do desemprego. Não surpreende que em um órgão tão preparado para o fracasso, para a recompensa à mediocridade e para a gestação de imbecilidades, ninguém tenha conseguido entender o que a Copa no Brasil significasse nem pudesse avaliar o colossal peso que ela despejaria sobre os 23 escolhidos.

Em vez de 23 heróis, guerreiros experientes e com uma fibra sobre-humana, comandados por um líder, a CBF formou um exército de Brancaleone: um treinador em seu ocaso, com uma comissão técnica em que figuravam seus amigos, um burocrata carreirista (Parreira, que é uma versão modernizada da subserviência traiçoeira Zagalliana) e um grupo de jogadores fraco tecnicamente, frágeis mentalmente, mas principalmente coniventes com o status quo político-comercial vigente.

Some-se a essa configuração, o fato de que todos os personagens dependiam dos lampejos de talento de um menino que visivelmente está a quilômetros da maturidade que se espera dele. É como se o desembarque na Normandia na II Guerra Mundial tivesse sido protagonizado por uma delegação de crianças dos jardins de infância da Europa. Felizmente, para o mundo, os estadistas que organizaram o Dia D sabiam da capacidade bélica da Alemanha, algo desconhecido no Estado-Maior do risível Exército de Brancaleone scolariano.

O que é realmente surpreendente e desesperador no episódio da derrota para a Alemanha não é o resultado em si (por mais dramático que ele tenha sido), mas a maneira como a sociedade e a mídia aceitam que um político senil como José  Maria Marin, ocupante de cargos biônicos na ditadura e com tristes conexões para a democracia no país, mantenha-se àfrente da “renovação” depois de ter dado a maior demonstração de incompetência da história do futebol.

Marin prepara um novo exército brancaleônico, com a mesma receita de burrice, incompetência, subserviência, ignorância e viés político que culminaram na derrocada brasileira – e ninguém faz nada. Nenhum jornal inicia uma campanha para exigir mudanças, nenhuma emissora de TV produz uma série de documentários abrindo as entranhas da CBF, nenhum jornalista vai além de modestas críticas quase inaudíveis em seus blogs. Essa inércia éum sintoma indiscutível de uma morte cerebral da sociedade, a mesma que absolve Mensalões, persegue e pune críticos e financia puxa-sacos estatais. Dada a abundância de recursos e potencial que temos, é difícil imaginar um lugar pior para se estar do que o Brasil. Mais uma vez, estamos fadados a morrer de fome em uma mesa farta…

Cassiano Gobbet
Cassiano Gobbet é jornalista, formado pela Universidade de São Paulo e mestre em jornalismo digital pela Bournemouth University.
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