Corrente do destino (dois de trezentos)*

“Ele se renderá tarde, o mais tarde possível. O futebol é sua vida. Todos os garotos que se aproximam deste esporte podem ter, graças a Pippo, uma esperança a mais.”
(Arrigo Sacchi)

Algum lugar entre a Grécia e a Trácia, século III a.C. “Ele roubou teu privilégio, o fogo rubro de onde nasceram todas as artes humanas, para presenteá-lo aos mortais indefesos” eram versos de uma tragédia escrita por Ésquilo, o poeta. Reza a lenda que Prometeu fora um titã agrilhoado por Hefesto, o ferreiro do Hades. Ordens de Zeus dada a ousadia prometéica em conceder aos mortais o fogo do conhecimento e das artes.

Istambul, maio de 2005 AD. Era o findar da primavera na Europa e o A.C. Milan estava em mais uma final da Champions League. Filippo Inzaghi passava por um longo periodo lesionado e não estaria pronto antes da grande final. Deveria estar assistindo o desfêcho daquela Champions League das tribunas de honra do grande estádio turco. Inzaghi era um centroavante italiano típico da década passada. De porte franzino, destacava-se pela leveza com que deslizava entre os zagueiros e também pela a impulsão para os cabeceios. ‘Oportunista’ diziam alguns além do fato de não raro encontrar-se em impedimento. Inzaghi fora destaque dois anos antes quando os rossoneri conquistaram seu sexto título europeu diante da Juventus de Turim. Um clima festivo que poderia estar contrastando com o cinzento sentimento no íntimo do camisa 9.

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Inzaghi e todos os espectadores se encantam com o sublime primeiro tempo da equipe de Milão. Os adversários? O tradicional Liverpool que ostentava glórias, mas eram feitos anciãos. Maldini, o capitão rossoneri dizia que seu sonho era ter visto dos Beatles. Não era um quarteto e sim um trio que incendiou a torcida. Shevchenko, um promissor Kaká e Crespo o argentino que substituia Inzaghi. 3 a 0, findar do primeiro tempo. O segundo tempo se inicia. Aquilo que poucos torcedores poderiam imaginar acontece. Em menos de quinze minutos os rossoneri padecem em solo turco. Numa blitz devastadora e inexplicável os reds fazem um, dois, três gols e empatam a partida. Os atletas se entreolham assustados. As pernas não obedecem aos comandos mentais.

Tudo se torna nebuloso e pesado, reflexo de uma maratona de jogos. Inzaghi teria observado atônito, imóvel, sem nada poder fazer. O Milan perdia o título europeu nos penaltis e no fim de semana seguinte perderiam a Serie A para Juventus, que teria aquele título cassado no tapetão.

Alemanha, junho de 2006 AD. A temporada de 2005/2006 se completou sem grandes conquistas rossoneri. Inzaghi já tinha a idade avançada. Para além dos trinta anos. Acaba surpreendido com uma inesperada convocação para o Mundial de 2006. A squadra italiana acabaria por vencer a competição. Venceram a França do mito Zidane. Inzaghi não fora titular mas marcara um gol solitário na campanha vitoriosa ainda durante a fase de classificação. Um gol solitário, como um centroavante que as vezes se perde em meio a marcação. Iniciou-se a campanha de 2006/2007. A vitória da squadra azzura aliviara o país, uma vez que a Série A surgiu cheio de incertezas. Foi o momento do calciocaos onde se revelou o moggiopoli. O fato atingira inclusive o próprio Milan que quase ficou fora da Champions League. Não houveram grandes contratações e Carlo Ancelotti sinalizou que em algumas oportunidades um centroavante atuaria sozinho a frente. Inzaghi estaria só até que algum zagueiro ou alguma contusão o impedisse de procurar a bola.

Atenas, maio de 2007 AD. O destino prega peças. Fora uma temporada abaixo da média para o Milan. O clube fizera o suficiente para se garantir na Champions League seguinte durante a Série A. De forma alguma foi o favorito nesta disputa. A equipe cresceu durante a temporada, sem contratações de grande alarde e com alguns atlétas ainda sentindo o desgaste do último Mundial. Kaká jogou aquilo que foi sua temporada maior até então. No ataque, a sua frente apenas um homem de área segundo determinou o treinador. Inzaghi e Gilardino revezaram em diversas ocasiões. Nos vestiários do grande estádio de Atenas com certeza um clima diferente. Um misto de ansiedade, vontade e revanche. Quis o destino que os rossoneri mais uma vez se alinhassem diante dos reds de Liverpool.

Inzaghi poderia ter sentido-se ansioso. Sua temporada não fora regular. Seu físico o prejudicara. Poderia acreditar que chegar até onde chegou já era muito. Poderia ter certeza de que há muito tempo adentrara o crepúsculo de sua carreira de boleiro. Observar a tragédia de Istambul poderia ter sido uma agônia tão grande quanto aquela que Prometeu, o trágico herói grego sofrera num tempo em que os deuses caminhavam sobre a terra. Debaixo de um céu crepuscular, Prometeu acorrentado sentia seu fígado ser devorado por uma águia dia após dia pois era um imortal. Zeus o condenara por roubar o fogo do conhecimento e das artes e entregá-lo aos homens. Como um trovão ressôou a voz de Sir Alex Ferguson. “Ele nasceu em impedimento!” teria sentenciado o inglês numa coletiva a respeito do velho camisa 9 italiano. O Milan venceu o Manchester United nas semi-finais. Uma linha invisível que as vezes se assemelha a uma corrente tão pesada. Será possível transceder, superar? Quando menos se espera, poderia se estar fora da linha impedida?

Uma partida sufocante e difícil se iniciou. Poucos espaços sufocavam Kaká. Steven Gerrard, o prodígio capitão inglês que levantara a taça dois anos antes estava jogando adiantado. Era um center-half de hábito. Os deuses do Olímpo assistiam a partida digna das maiores batalhas helênicas. Ao findar do primeiro tempo, numa cobrança de falta de Pirlo a bola é levantada. Inzaghi perdido entre os defensores ingleses encontra o caminho da redenção rossoneri ao desviar a bola para dentro do gol. 1×0 antes do fim do primeiro tempo. Um vislumbre dionisíaco. Após o intervalo a equipe de Milão volta atenta. O drama dos quinze minutos não se repetiu como em Istambul. Apolíneo, Kaká faz uma jogada individual e a bola encontra Inzaghi que supera a corrente invisível e marca o gol da vitória. Os ingleses ainda descontam ao findar mas decreta-se a sétima conquista européia do Milan.

Todos poderiam estar se sentindo acorrentados a uma linha de impedimento desde aquela noite em Istambul. Por um momento, Inzaghi poderia ter se distanciado daquela algazarra que se faz entre os atletas ao fim de uma vitoriosa partida final. Apenas poderia ter parado e escutado o hercúleo murmurar da torcida enquanto olhava para os céus de Atenas. Para além do manto negro que abrigava aquelas estrelas estariam mitos e lendas observando e invejando os feitos destes pequenos mortais na Terra. “Estaria a arte da bola jogada com os pés entre as artes que os mortais desenvolveram a partir da chama que Prometeu roubou?”, Zeus teria se perguntado. Reza a lenda que um dia Prometeu se libertou…

*Esta cronica foi originalmente publicada no site Trivela por volta de março de 2009 quando Filippo Inzaghi anotou seu gol numero trezentos em partidas pela Série A.

Alexandre Kazuo
Alexandre Kazuo é blogueiro de futebol há mais de 10 anos. Ex-colaborador do Trivela (2006-2010) e ex-blogueiro do ESPN FC Brasil (Lyon). É mestre em filosofia contemporânea e também procura por cultura pop, punk/rock/metal. Twitter - @Immortal_Kazuo
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