A vergonha italiana e a lei de Drácon

Seis anos depois, novamente a seleção se concentra em Coverciano para um torneio importante e está soterrada pelas denúncias de falcatruas, desta vez, partidas arranjadas por conta de apostas, ou Calcioscomesse. Nomes como os dos recém-campeões da Itália, Antonio Conte e Bonucci, do lateral Criscito, além de ex-ídolos como Signori e Doni (mitos de Lazio e Atalanta) e uma série de outros jogadores da Série A. O sério e não-político premiê italiano, Mario Monti, indignado com o futebol infecctado de seu país, sugere uma pausa de dois a três anos no futebol para que “o cidadão comum amadureça”. Naturalmente, a cartolagem e todas as rêmoras do sistema futebol apressam-se em dizer que tal coisa é impensável. Mas não é impensável, não. O escândalo de hoje é filho da leniência com os culpados de Calciopoli, o escândalo de 2006 que terminou praticamente sem punidos porque a Itália venceu a Copa do Mundo. A Itália precisa de um choque draconiano, algo que desinfete até o último poro de seu futebol. Se isso significar o redimensionamento do Calcio por uma década, que o seja. Como está, ficará redimensionado para sempre. A Lei de Drácon jamais foi tão necessária.

ROME, ITALY - NOVEMBER 18:  Prime Minister Des...

O governo italiano deveria lançar mão de seus precedentes legais e intervir no futebol, mesmo que isso significasse uma suspensão da pútrida Fifa. As finanças dos clubes deveriam ser auditadas, telefones de seus dirigentes, jogadores e agentes grampeados e todo o sistema deveria ser resetado para eliminar os Gallianis, Morattis, Zamparinis e Preziosis do comando dos clubes. O mítico Zdenek Zeman, único personagem que bate nesta tecla desde os idos tempos nos quais a Juventus da tríade Moggi-Bettega-Giraudo imperava, tem toda razão quando diz que nada mudou.

Algum leitor há de lembrar que a Juventus foi rebaixada. Sim, é verdade, mas a Juventus teve uma pena leve diante do esquema que armou ao redor da Série A. Ademais, praticamente metade da primeira divisão estava envolvida de alguma forma com o escândalo, então era justo que também fossem rebaixados e, nesse caso, a Juventus deveria ser conduzida às divisões ainda mais baixas do futebol italiano (sim, esta alternativa era a primeira tese legal dos juristas, mas foi deixada de lado porque “não se pode por a Juventus na Série C”, mas a verdade é que sim, se pode). Além da questão da Juventus, nenhum dirigente foi preso. As punições de afastamento e multa foram patéticas e poderiam perfeitamente ser sentenças de juízes corruptos no Brasil.

O fato de a campeã italiana ter em suas fileiras nomes envolvidos em primeira mão no escândalo mostra como o sistema é podre de cima a baixo. Antonio Conte está envolvido nas denúncias até o pescoço e só não vai preso se mais uma vez o sistema entrar em ação, o mesmo sistema que matou o juiz Giovanni Falcone, magistrado que conduzia a “Operação Mãos Limpas” e o mesmo sistema que manteve um político da laia de Silvio Berlusconi no poder por mais de uma década. A Itália não precisa limpar seu futebol por causa do futebol. Precisa desinfetar o esporte para mostrar à própria nação que ela pode existir sem depender das conexões mafiosas que comandam o país desde o pós-guerra.

Conforme as acusações vão subindo de tom (atingindo mais e mais jogadores da primeira divisão), fica claro que não há inocentes. Os títulos na Itália da última década são tão genuínos quanto os campeonatos brasileiros dados pela CBF a meia dúzia de clubes por conta de desavenças políticas. Para cada Moggi que comprou um juiz, há um Galliani que falseou a contabilidade e um Moratti que tinha um ‘despachante’ que transformava seus jogadores em cidadãos europeus por um punhado de euros.

Ao contrário de 2006, quando tinha um criminoso no poder, hoje a Itália tem uma chance de se passar a limpo porque tem um tremendo trunfo – o premiê Mario Monti não é um político e jura de pés juntos que não aceita disputar a eleição (o que é sintomático de quanto a população está farta dos atuais políticos, já que Monti tomou medidas duríssimas para conter o déficit e mantém índices de aprovação relativamente altos.) Desta vez, há uma esperança de que o governo cumpra sua função e prenda culpados, feche clubes e proíba entidades de funcionar, doa a quem doer. Nada é mais dolorido para um torcedor de um time italiano do que ver o Milan incapaz de competir financeiramente com um clube médio da Espanha ou a Itália servindo de saco de pancadas nas fases finais da LC.

Há também o papel da imprensa. Em 2006, quando soube do tamanho do escândalo através de um amigo jornalista britânico, escrevi para o saudoso Candido Cannavó, então diretor da Gazzetta Dello Sport. Perguntei a ele se aquilo tudo não era culpa nossa, da imprensa, porque se a história tinha aquele tamanho, é impossível que os jornalistas não soubessem de nada. Cannavó tergiversou com grande cordialidade e disse que a Gazzetta denunciava, mas discordei dele (sem dúvida o maior jornalista esportivo italiano depois de Gianni Brera). A imprensa falhou de novo. A falcatrua ganhou as manchetes porque a polícia começou a  prender e interrogar. Até então, não houve um jornal que apontasse a luz para o canto escuro da sala. E lá, hoje como em 2006, estavam os Moggis, Gallianis e Zamparinis.

É difícil imaginar por onde começar, mas encarcerar todos os envolvidos no escândalo seria um bom começo. É provável que bem um time de Série A acabe preso, com direito a técnico. Se for necessário ir adiante e avançar sobre federações e clubes, prendendo e fechando, que assim seja. Aceitar o clamor popular que vergonhosamente não aceita uma punição tão radical quanto a paralisação dos campeonatos é admitir que a Série A que vem continuará competindo com Portugal e Holanda no segundo batalhão de ligas europeias. Não há espaço para paixão clubística aqui. A luta é para salvar uma cultura, que foi infectada por uma mistura de aristocracia falida com uma cleptocracia bilionária que teria na sua segunda geração os oligarcas russos, ainda mais sem controle do que os desgovernados Berlusconis e Tapies. Quando a bola rolar na próxima Série A, se nada for feito, tudo estará um pouco menos – menos alegre, menos emocionante, menos apaixonante – enquanto meia dúzia de vagabundos estará mais rica. E em poucas oportunidades o circo terea sido mais circo do que então.

Cassiano Gobbet
Cassiano Gobbet é jornalista, formado pela Universidade de São Paulo e mestre em jornalismo digital pela Bournemouth University.

4 Comments

  1. Duas perguntinhas rápidas:
    1) Essa “compra” de 20 relógios Rolex por parte do Buffon não parece a versão boleira da célebre “Operação Uruguai”, do igualmente célebre Collor de Mello?; e

    2) “Crimes and Misdemeanors” (EUA, 1989) por acaso seria o filme favorito dos dirigentes e jogadores da Juventus?

  2. Por mais que Mario Monti pareça realmente ser uma figura séria, não acredito que possa, sozinho, fazer com que os denunciados no escândalo sejam punidos com o rigor que merecem.

    Aliás, já não adianta apenas punir nomes. Já não é o bastante. O sistema está podre. O futebol italiano precisa ser repensado. A situação é tão crítica que a solução drástica de Monti já não me parece uma má ideia.

    Espero que Trapattoni faça um favor ao futebol italiano e leve a Irlanda para a fase eliminatória da Eurocopa junto com a favorita Espanha.

    Quanto menos distrações, melhor.

  3. Vai que a Azzurra resolva jogar bola e vença a Euro. Claro que é extremamente difícil, mas abafaria totalmente a tentativa de moralização do esporte no país. Bom, os italianos sentir-se-ão em casa na Polônia e, em maior medida, na Ucrânia, onde o crime organizado faz e acontece desde o fim do “império do mal” (REAGAN, 1980).

  4. Agora, sim, Cassiano. Concordo plenamente.

    O futebol italiano é, fácil, um dos dois mais tradicionais da Europa. Foi assistindo à Serie A do fim dos 1980/início dos 1990 que muita gente começou a gostar de futebol europeu, aqui no Brasil. Mas a estrutura já estava podre. Como estava na época do Totonero. Como estava na época do Calciopoli. Como está agora.

    Sem dúvida, Itália e Espanha são os dois países mais semelhantes ao esquema brasileiro. A Itália, pela podridão. A Espanha, por ser administrada nas coxas, tornando pior um campeonato que tinha tudo para ser bom.

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