O jornalismo esportivo está em xeque

Ao ler a resenha de Maurício Stycer no UOL sobre o livro de Bob Farias que entrevista diversos narradores (quase todos da Rede Globo, onde ele também trabalha) não me deixou estarrecido, mas causou um suspiro de trsiteza. Isso porque se as declarações destacadas por Stycer não revelam nenhuma verdade inesperada, elas deixam claro que o jornalismo esportivo de qualidade está praticamente extinto da TV (e nas outras mídias, quase). O fenômeno não é só brasileiro e não se limita exclusivamente à TV. A vocação de entretenimento que a crônica esportiva sempre teve passou a ser a sua essência.

A observação não se trata de uma condenação pura e simples. Não se trata de uma sentença sobre a qualidade dos jornalistas brasileiros em especial. Certo, as faculdades de jornalismo caíram para um nível obsceno de qualidade de ensino e os profissionais formados hoje saem com problemas insanáveis até mesmo sob o ponto de vista da gramática. Mesmo os grandes jornalistas (e há um punhado deles) estão acossados por uma sequência de circunstâncias que os obrigam a jogar o jogo que lhes é imposto. Que jogo é esse? Uma combinação de um momento específico da indústria e interesses financeiros.

O jornalismo esportivo na TV está completamente dormente. Praticamente todas as emissoras que transmitem um determinado campeonato estão fadadas a não fazer jornalismo incisivo. Caso elas se atrevam, deixam de ter condições de disputar a compra de direitos de transmissão daquele campeonato. Daí, caem no discurso dos narradores da Globo que Bob Faria escancarou (ainda que sem querer) em seu livro – o de que o jornalista deixa de ser jornalista para se transformar num promotor de eventos. Não se menciona se o presidente da federação é um corrupto, se o dinheiro aportando naquele clube vem de traficantes de armas nem se a contratação daquele jogador mediano a preço de ouro foi feito para encher o bolso de um agente corrupto. Nada. Tudo que possa revelar que aquela partida é um grande engodo fica “esquecido”. Isso ajuda a explicar como tanta gente estava certa de que haveria um grande jogo entre Santos e Barcelona, quando o futebol brasileiro como um todo está a uma distância estelar das ligas mais profissionalizadas.

As publicações impressas estão livres da necessidade de ter de negociar com federações corruptas por direitos de TV. Entretanto, seguem pressionadas por vendas decrescentes e uma constante busca do torcedor por publicações que enalteçam seu time. Bons jornalistas que apontem que a contratação de Valdivia foi um negócio demencial ou que a construção do estádio do Corinthians é um acinte criminoso são caçados, ofendidos e às vezes até ameaçados fisicamente por “torcedores” que despejam toda a sua frustração de suas vidas na defesa insana de um clube que é tão deles quanto a lua. Jornais e revistas que não aceitem fazer matérias “provando” que o corintiano Paulinho é tão bom quanto Mascherano ou que Neymar e Messi estão no mesmo nível vêem suas vendas despencar. Por isso que se vê, eventualmente até em títulos históricos, matérias como a que a Placar fez há alguns anos em que Petkovic se oferecia para jogar na Seleção Brasileira.  Faz porque o mercado quer assim.

Frequentemente se fala que o “mercado” é uma coisa intangível, mas não é, especialmente neste caso. O mercado aqui é “o que o leitor quer ler”. E o leitor não quer jornalismo. Ele quer que falem bem do seu time. O flamenguista quer que se decante todo o talento de Renato Abreu e como certamente o Real Madrid perde tempo em não tê-lo, assim como o palmeirense quer que se fale bem de sicrano e o gremista de beltrano. Senão, ele basicamente, não compra, não assiste, não acompanha. Há um torpor coletivo, uma aversão à realidade que impede que mesmo pessoas letradasContudo, quando a realidade é mostrada a fórceps, como na chacina de Yokohama onde o Santos foi dizimado, ele não se coloca como parte responsável  na equação. Mas é. A determinação desse leitor/consumidor/cliente em só ver a verdade que quer é ponto cardeal no desmonte da atividade do jornalismo esportivo.

A falência do sistema não se restringe ao jornalismo esportivo brasileiro. Monumentos do jornalismo, como a Gazzetta Dello Sport, Marca e FourFourTwo transformaram-se quase em assessorias de imprensa. Além de calciomercato, um conluio incestuoso entre jornalistas e agentes para criar notícias de transferências aumentando os  ganhos de ambos (o jornalista, porque vende mais jornal e o agente, porque consegue chantagear os clubes a melhorarem seus vencimentos), essas publicações exageram nos elogios e muito raramente fazem análises sérias e distanciadas, preferindo tecer críticas somente após as derrotas e notando que “já vinham dizendo aquilo há muito tempo”. Conversa fiada.

Hoje, criticar ou analisar com rigor um time que está vencendo é quase uma certeza de diminuir audiência e vendas.Um exemplo que me vêm à cabeça é o da parceria quase criminosa entre MSI e Corinthians. À época, a maioria esmagadora da imprensa se esbaldou em celebrar os gols de Tevez, mas raros, raríssimos jornalistas diziam na grande mídia que aquilo daria errado – muito errado (entre as exceções, me lembro claramente de José Trajano, da ESPN Brasil, dizendo que não tinha como aquilo acabar bem). Imagine, por exemplo, se um jornal de grande circulação que  dependa da venda de sua redação de esportes inicia uma campanha para alertar que o Corinthians irá pagar caro os excessos da gestão de Andres Sanches no futuro. Conseguiria só ver suas vendas despencar. Nada mais.

É bem verdade que o infotainment prospera em todas as editorias. As grandes revistas noticiosas brasileiras, por exemplo, não se cansam de fazer matérias de capa sobre futilidades como artistas medíocres e seus “fenômenos” de sucesso, técnicas de cirurgia plástica ou emagrecimento. Contudo, nas outras editorias pode-se fazer jornalismo sem a pressão de, digamos, conseguir os direitos de transmissão de um campeonato e, por mais que a audiência busque pão e circo, ainda há interesse em jornalismo de qualidade.

No esporte, não. Entre a espada imposta pelo enxugamento do mercado (em particular por causa da oferta da mídia digital), a guinada do público rumo à preferência pelo “me engana que eu gosto”, e a dificuldade na capacitação adequada de novos profissionais, fazer matérias que avaliem seriamente as capacidades (reais) de cada time, o nível técnico das competições, a lisura dos gestores do esporte ficou muito, muito mais difícil, especialmente porque profissionais muito competentes aceitam adotar a postura de “vendedor de emoções” que Galvão Bueno orgulha-se em atribuir a si mesmo. Ainda há os “guerrilheiros” que, mesmo com este quadro, seguem tentando fazer jornalismo com “J” maiúsculo dentro das condições cada vez mais adversas, mas cada vez mais eles estão encurralados. Parte desse cenário não tem como mudar, porque a indústria da mídia está atravessando por mudanças em suas bases. Agora, uma outra parte depende do que quer o espectador/leitor/internauta. Se ele continuar querendo o “me engana que eu gosto”, não há nada que possa ser feito.

Por mais crítico que eu normalmente seja da imprensa esportiva, a atual conjuntura não é culpa dela mesma. Sim, pode ser que ela tenha milhares de defeitos, mas não é responsabilidade sua que toda a indústria esteja passando por um momento equivalente ao choque do cometa que causou a era glacial e extinguiu os dinossauros, nem a redução da qualidade da educação formal (do público e de seus próprios profissionais) nem da própria configuração da mídia no Brasil onde uma empresa só é que realmente tem força para dar as cartas. Grandes, excelentes profissionais ainda trabalham premidos por essa situação (embora uma quantia esmagadoramente maior tope jogar o jogo desde que isso traga benefícios para eles). Como disse um colega jornalista que está na minha lista de referências há algumas semanas, a revolução da mídia deve nos levar a uma situação de trevas até que a transição para a nova ordem esteja completa. No que tange o jornalismo esportivo, essa situação de trevas já está em vigor.

Cassiano Gobbet
Cassiano Gobbet é jornalista, formado pela Universidade de São Paulo e mestre em jornalismo digital pela Bournemouth University.
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