Adeus, Doutor

Num dia em que o Corinthians tem tudo para se sagrar campeão, um de seus maiores ídolos esportivos se despede. Sócrates não jogou menos bola do que nenhum outro corintiano que já tenha pisado sobre a Terra e com a vantagem de ter uma quantidade de caráter que pouquíssimos jogadores de futebol – alvinegros ou não – jamais conseguiu sonhar. É irônico que sua morte aconteça num dia em que a administração de Andrés Sanches, que é a antítese absoluta de Sócrates, se consagre a senhora feudal do futebol brasileiro.

Para quem não viu Sócrates jogar, eu lamento. Sócrates só não foi o maior jogador do mundo e de sua geração por causa de sua indisciplinaValeu doutor! Volta logo! #socrates #rip #corinthians e pouco profissionalismo. Fumante, pouco afeito a treinos e apreciador de uma cerveja (fato que em última instância seria causa de sua morte), o Doutor não foi maior do que Zico porque o Galinho, além de um fenômeno de talento, era um profissional aplicadíssimo. Ele participou do meio-campo mais fantástico que tenho lembrança, o da Seleção de 1982. Os dois, Sócrates e Zico, tivesem vencido aquela Copa, teriam entrado para a a galeria dos grandes jogadores de todos os tempos no mundo.

Em defesa de seu parco profissionalismo, é preciso lembrar que a rebeldia e incompatibilidade com as regras do establishment fazem parte da ideologia do corintiano-marxista Sócrates. Um cara que que acreditava ser possível que as pessoas gerenciassem as próprias responsabilidades e que imposições não eram necessárias para o funcionamento das coisas. Sócrates acreditava num mundo que não existia e nunca seguiu as carreiras típicas dos ex-jogadores, como rêmoras da CBF, comentaristas inócuos e/ou desonestos ou empresário de jogador porque seu DNA não compreendia essa possibilidade, a de ser desonesto para ter pequenos favores.

Aos sãopaulinos que acharam Raí um grande craque, cabe mais um parâmetro de comparação. Raí era uma fração de Sócrates  em termos de talento. Contudo, consagrou-se infinitamente mais porque usou todo o talento que podia enquanto um profissional ímpar. Tivesse sócrates o profissionalismo de Raí e ele teria vencido tudo em todos os campeonatos. Raífoi um trabalhador aplicado; Sócrates era o artista irresponsável. Para os que comparam Sócrates a Neto, por favor, nasçam de novo. Em uma unha e meia de Sócrates, estavam contidos uma dúzia de Netos. Isso como jogador. Como homem, a comparação é impossível.

Socrates 469 BC - 2011 AD

Sócrates jamais foi um grande entendedor de futebol. Como comentarista, misturava seus ufanismos ideológicos a um mundo que jamais compreendeu, um sintoma de quanto foi uma pessoa de caráter. Confundia a competência dos adversários em campo com a sua posição política e por isso, frequentemente fazia avaliações técnicas sofríveis. De um colega jornalista estrangeiro, ouvi a seguinte definição: “A great, awesome guy, but not serious.” Essa falta de seriedade à qual meu colega se referiu não era uma crítica, mas uma avaliação de quanto o Doutor não compreendia que o mundo real e o mundo de sua utopia particular eram coisas distintas.

Hoje, com a conquista provável do Corinthians, a banda mais podre da história do futebol brasileiro completará a tomada do poder. Com Ronaldo assinando os cheques da Copa do Mundo, o presidente do Corinthians destinado a ser o próximo ocupante da cadeira de chefe da famiglia que comanda o futebol do Brasil, Ricardo Teixeira mantém-se como o senhor do esporte no Brasil, ainda que com tanta gente dizendo opor-se a ele. Esse status quo é tudo, rigorosamente tudo o que Sócrates mais condenava. Para a história, sua morte fica quase que como um protesto. O mundo do futebol que ele deixa é um mundo que ele não suportava, de corrupção, mentiras e falcatruas. Essa incompatibilidade dele é o desenho mais perfeito de quanto perdemos uma pessoa querida.

Vá com Deus, Sócrates. Seu imenso futebol não foi um décimo de seu caráter.

Cassiano Gobbet
Cassiano Gobbet é jornalista, formado pela Universidade de São Paulo e mestre em jornalismo digital pela Bournemouth University.
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