Explicando o armador recuado

Uma observação semiirônica de um colega de trabalho me fez dar conta de que uma expressão que eu uso com freqüência, o “armador recuado”, pode estar sendo interpretada por leitores de um modo inadequado. Não se trata de uma invenção nem de um “tatiquês” semelhante à “treinabilidade”, um dos vernáculos famosos do titês corintiano. O armador que não atua na frente do meio-campo é difícil de conceber para o futebol brasileiro, mas existe, mesmo aqui. E é uma das posições mais raras do futebol moderno porque exige tanto do jogador quanto do time.

O exemplo mais famoso no futebol italiano é o juventino Andrea Pirlo. Pirlo não é um meio-campista de origem. Quando começou no Brescia, era segundo atacante, e por isso foi comprado pela Inter. Era considerado o herdeiro de Baggio, mas o tempo fez com que ele trocasse de posição. Assim que chegou ao Milan, Carlo Ancelotti, substituindo Fatih Terim, resolveu fazer uma experiência tática com o time que na verdade tinha sido sua tese no curso de treinadores de Coverciano. Ancelotti sugeria que um meio-campo em “rombo” (com um volante, um  trequartista e dois meio-campistas puros), dava maior ofensividade ao time pois permitia ao time ter mais de um jogador arquitetando a manobra. Ancelotti, em sua primeira experiência, tentou escalar o georgiano Kaladze ali (que, originariamente, era volante no Dynamo Kiev), mas foi com Pirlo que o jogo do Milan decolou.

 A posição seria a definitiva na carreira de Pirlo – na Itália, chamada de playmaker basso, cuja tradução livre preferida por mim é a “armador recuado” (uma tradução mais rigorosa seria a de “armador baixo”, mas, creio eu, fica com uma compreensão mais hermética). O playmaker basso tem uma grande vantagem em relação ao trequartista (que no caso desse Milan era Rui Costa ou Rivaldo): ele tem uma visão do jogo onde por olhar o próprio time e o time adversário, além de, normalmente, sofrer uma marcação menos aguerrida do rival por estar distante da meta oposta. Nesse Milan, Pirlo era desocupado de funções mais defensivas pela disposição de Gattuso. Assim,normalmente o ex-milanista podia pegar a bola e engendrar o ataque por onde o time estivesse menos marcado.

O desenho da posição não é uma invenção de Ancelotti. Para citar outros nomes no futebol italiano, é possível lembrar de Pizarro na Roma, Montolivo na Atalanta e Fiorentina; na Europa, Essien (especialmente ainda no Lyon), Xabi Alonso e Xavi são outros exemplos, mesmo que jogando em esquemas diferentes do Milan de Pirlo.

So o play basso tem a vantagem de observar o jogo com muito mais amplitude, ele tem o problema de não fazer muitos gols. O futebol brasileiro raramente vê esse jogador em ação por causa da dinâmica do jogo. Ofensivo xiita, o esquema tático brasileiro normalmente inicia a manobra ofensiva com um meia que já joga muito próximo do ataque. Por conta de uma miopia que Tostão frequentemente aborda em suas colunas, os técnicos brasileiros preferem rechear aquela faixa do campo (a região à frente da defesa) com tanques de guerra que se dedicam só a tirar a bola do adversário ou mandá-lo para uma tenda de oxigênio. O futebol italiano tem um ritmo menos frenético e não raro aguarda o ataque do adversário (como observa David Winner em Brilliant Orange, “abraça o adversário para golpeá-lo com uma faca nas costas” [n. do r. uma leitura para a cultura de contragolpe italiana).

Um raro exemplo de armador recuado no Brasil recente, em sua melhor fase no São Paulo, Hernanes melhorava o jogo do São Paulo como um todo porque atuava no setor, mas já tinha a visão de jogo para armar a jogada e qualidade no passe para isso. Posteriormente, veio a jogar mais adiantado onde se destacava menos. Outra razão para que os jogadores à frente da defesa tenham menos incumbências de armar jogadas é que no Brasil, normalmente os laterais são importantes armas ofensivas e não raro vão para a Europa jogar como meio-campistas.

Fazendo um paralelo com outro esporte, a posição do playmaker basso é similar à do armador no basquete (claro, trata-se só de uma licença poética, uma vez que as dinâmicas dos dois esportes são completamente diferentes). Outro paralelo é com o futebol americano, onde o quarterback pensa a jogada por trás da linha de guards  que o protegem. Pensar o jogo é uma tarefa que pode ser desenvolvida em qualquer setor do campo, mas  em cada um, o modo de jogo é diferente. Se Pirlo atuasse atrás dos atacantes, precisaria ser mais rápido, mais forte e entrar mais na área; se jogasse pelas laterais (como faz Ryan Giggs), teria de ter mais velocidade, buscar mais  alinha de fundo e puxar a marcação para o setor antes de buscar companheiros livres no flanco oposto.

No desenho à direita, o armador aparece atrás dos outros meio-campistas, mesmo sendo o responsável por armar a manobra de ataque. O deslocamento do armador para a frente da defesa precisa ser acompanhado por um auxílio dos outros meio-campistas na marcação, mesmo que seja mais adiantada. Atuar com um armador recuado não deve ser visto como uma tática defensiva (c0mo não era o Milan campeão europeu). Dependendo da cultura tática do time, o jogo pode ser impostado mais adiante, com a linha defensiva alta (que exige zagueiros velozes) e pelo menos um atacante que atue fazendo a ligação com o meio-campo.

 

Cassiano Gobbet
Cassiano Gobbet é jornalista, formado pela Universidade de São Paulo e mestre em jornalismo digital pela Bournemouth University.
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