Um histórico da tensão milanesa

“Gattuso e Leonardo: cinco anos depois, o derby da vulgaridade, o jogo acaba empatado”. A definição do jornalista Luca Serafini, ex-diretor da Sky e hoje na Mediaset (declarado torcedor do Milan), me parece a mais adequada para o imbróglio envolvendo Gattuso e Leonardo, Inter e Milan, Moratti e Galliani, Curva Nord e Curva Sud. Nada disso aconteceria se não fosse Calciopoli.

Historicamente, o confronto entre Milan e Inter sempre foi considerado o mais civil da Itália entre rivais. O clássico de Milão nunca foi um programa desaconselhável para pais levarem seus filhos, ao contrário de outros derbys do país, como Roma x Lazio, Juventus x Torino, Genoa x Samp. As duas torcidas chegaram até a organizar uma exposição com fotos das faixas mais engraçadas das provocações entre as duas partes da cidade (“Milano siamo noi”), com fundos arrecadados para a beneficência. Serafini lembra que raramente as discussões iam além das ironias sutis e mesmo quando o assunto era Materazzi, já zagueiro interista, a Milão nerazzurra não nutria grande simpatia, preferindo dar atenção a bandiere mais dignas. Tudo foi assim, desde sempre, até 2006.

Daí veio Calciopoli. Em meio à série de acusações, argumenta o jornalista, veio a primeira verdadeiro dissensão entre milanistas e interistas. Dali em diante, Massimo Moratti e a cúpula interista elevaram-se à condição de bastiões da ética (de fato o fizeram), esquecendo-se Passaportopoli, da falsificação de documentos de menores para jogar no clube e afins para elevar as acusações do esquema moggiano como única razão pelo fracasso em uma década e meia de gestão Moratti, também se esquecendo que a frustração se repetia na Europa, um sintoma da fragilidade interista dentro de campo. De 2006 em diante, a rivalidade amistosa tornou-se acusatória em Milão, com a Milão nerazzurra em versão inquisidora e a rossonera em versão acusada. A nobreza e educação de Moratti deram lugar a um cartola comum, que via seus fracassos única e exclusivamente como responsabilidade de uma falta de honestidade alheia.

Serafini então aponta o erro milanista no agravamento das tensões, de Ambrosini, que pegou uma faixa de um torcedor durante a celebração do título da LC em 2007, onde se lia “Esse scudetto, metam-o no c…”. Naquele mesmo ano, o Mundial de Clubes foi classificado por Marco Branca, dirigente interista, como “um torneio amistoso”, cuja resposta de Costacurta, em entrevista ao Corriere della Sera, dizendo que “é por isso que nosso símbolo é Maldini e o deles é Materazzi”. O tom ganhava cada vez mais acidez e menos camaradagem. No derby seguinte, Moratti virou-se para Galliani, dando-lhe uma banana ao apito final e na festa do título (pouca gente se lembra disso – eu mesmo não lembrava), Cambiasso cantava com a torcida para Ambrosini “enfiar o scudetto no …”. E nunca mais Inter e Milan tiveram uma rivalidade “desportiva”. O Milan provocando a Inter contratando seus heróis (em grande parte já passados, como Vieri, Ronaldo – mas às vezes não, como Ibrahimovic) e a Inter classificando-os de traidores (embora, lembra Serafini, não há registro da torcida interista incomodada com o Ibrahimovic rapinado da Juventus rebaixada).

Esse estado de coisas explica qual o panorama no qual Gattuso subiu ao lado de meia dúzia de marginais (sim, lembremos que a facção da torcida mais forte na Curva Sud hoje é a mesma que vaiou o ícone Paolo Maldini em sua despedida em San Siro) e cometeu a deselegância tosca, burra até (mesmo que justificada sob o ponto de vista do torcedor) de chamar Leonardo de “uomo di m…”. A mágoa interista de mais de uma década de má gestão (porque, Moggi à parte, como escrevi ontem, não era o mafioso napolitano que contratava Domorauds, Milaneses, Gilbertos e Vampetas) explodiu em 2006 e criou uma crise e novas mágoas que dragaram a outra parte de Milão, com prejuízos inclusive financeiros (que em última instância, levaram o Milan a ceder Kaká em 2009) para uma raiva tensa que é nítida entre os jogadores dos dois times.

Infelizmente não há mais Maldinis nem Bergomis nos dois times. Ambrosini e Javier Zanetti não tem a estatura necessária para conduzir os dois grupos a reaver a serenidade ideal para uma rivalidade que jamais foi raivosa (como no clássico do Norte de Londres entre Arsenal e Tottenham, na Old Firm, entre Rangers e Celtic ou no clássico espanhol entre Barça e Real). Passagens de ídolos de um lado a outro certamente não ajudam (como ocorreu com Ibra e Leonardo e que, tudo indica, ocorrerá com Balotelli em algum momento). No momento, a rivalidade está no nível de Materazzi. É preciso fazê-la voltar ao de Giuseppe Meazza, mas não há nada que indique alguém capaz de fazer isso em meio a tantas acusações.

Não há exatamente um culpado pela situação. Concordo com Serafini que o tom inquisidor e de quem se auto-elevou à condição de bastião da ética foi adotado por Moratti, Branca e Orialli, mas também é verdade que o desnudamento da extensão de Calciopoli era o suficiente para transtornar quem quer que fosse. Creio que o azar tenha sido ocorre num momento em que os dois times tinha poucas lideranças com credibilidade além de suas torcidas. Maldini certamente era uma, mas já estava a um passo da aposentadoria. Além disso, as duas torcidas foram amplamente contaminadas por facções criminosas na última década (Maldini sendo hostilizado pela torcida milanista ultrapassa a insânia) e era difícil imaginar sensibilidade vindo daí. Precisamos dos símbolos dos clubes de volta, desta vez como dirigentes. A hora de Gallianis, Berlusconis e Morattis já passou. Pena que eles não saibam disso.

Cassiano Gobbet
Cassiano Gobbet é jornalista, formado pela Universidade de São Paulo e mestre em jornalismo digital pela Bournemouth University.
Top