Uma banana

A vida das pessoas de uma maneira geral, é um grande viveiro de frustrações. A grande maioria delas irrita-se, cria casos, entra em polêmicas vazias, para conseguir chamar a atenção. Doutra feita, teria de se limitar à sua triste existência, sem atenção nenhuma (que, normalmente, não tinha nem dos próprios pais), sabendo estar caminhando rumo à morte numa imensa estrada vazia. Esse tipo de gente está em todo lugar. Alguns são empregadores que maltratam funcionários, outros são policiais que abusam de violência e, entre outros, há também os anônimos que jogam bananas em campos de amistosos entre seleções. Desses últimos, eu sei que você ouviu muito falar no Brasil, esse país tolerante, depois de domingo. Mas certamente você não ouve as mesmas críticas aos idiotas que vão ao estádio perseguir jogadores supostamente homossexuais.

O episódio da banana para Neymar não merece atenção. Estatisticamente, num estádio com 60 mil pessoas, a quantidade de idiotas é imensa, cientificamente incalculável. Poderia-se esperar, até, que Neymar fosse soterrado por um container de bananas, caso cada idiota resolvesse arremessar uma fruta nele. A indignação da imprensa foi exemplar porque o gesto ocorreu em Londres (mas já ocorreu aqui também, com Grafite, num amistoso da Seleção). Neymar não deve prestar atenção no ocorrido porque sabe que em uma semana ganha mais dinheiro do que o frustrado arremessador de frutas em cinco anos e, além disso, tem um talento que o coloca tão acima de um racista qualquer que faz com que o episódio seja até positivo para ele, tal a exposição que o ocorrido lhe proporciona.

Minha questão é: por que o Brasil se indignou? Ninguém certamente acha que Neymar deitou-se no hotel e chorou com a agressão. Provavelmente já tinha se esquecido antes de chegar ao vestiário. Ninguém no Brasil imagina que o gesto de um babaca num amistoso inútil possa colocar em risco nossa reputação como povo. A indignação ocorreu porque o brasileiro se acha tolerante, amistoso e hospitaleiro. Assim, contra um povo tão nobre, uma agressão vil do gênero ganha ares de holocausto.

Para os que se sentiram ultrajados com a banana, que tal se colocar na pele de Richarlysson? Que tal imaginar que, há anos, ele vai ao estádio duas vezes por semana para ser “xingado” de homossexual (sim, porque para o brasileiro, ser homossexual é uma doença ou um defeito de caráter geneticamente determinado), sem que quase ninguém ache um absurdo? O que os bastiões da correção fizeram para exigir que as massas de torcedores (em muitos casos, até do próprio clube onde ele joga) fossem punidas ou ao menos repreendidas? Há um projeto de lei tornando a homofobia crime passível de prisão. Vamos imaginar estádios lotados indo para a penitenciária?

O moralismo míope no episódio me lembra muito o dos ingleses no século passado, que olhavam para o resto do planeta com desdém e acusações de falta de civilidade. Pouco antes da Copa de 1970, o técnico da Inglaterra então campeã mundial,  Alf Ramsey declarou que temia pelas arbitragens de sulamericanos porque eles eram pouco honestos. “Então você acha os ingleses mais honestos?”, questionou João Saldanha. Com a afirmativa de Ramsey, Saldanha emendou: “E então porque a Scotland Yard ficou tão famosa?”. A postura de indignação adotada no episódio sugere a mesma arrogância, a de que esse é um problema do qual estamos livres, dada a nossa superioridade. Mas não estamos livres não.

Idiotas sempre existirão e episódios racistas como o da banana acontecerão enquanto houver alguém respirando. Martirizar Neymar e a Seleção como ícones de uma perseguição bíblica  é uma idiotice. O verdadeiro crime ocorre todos os dias nas ruas quando negros, asiáticos, muçulmanos, homossexuais, despossuídos e outros grupos na maioria das vezes indefesos são vilipendiados sistematicamente no anonimato.

Já que estamos quebrando paradigmas recentemente – deixando de ser o país do futuro, o país sem desenvolvimento, os caloteiros internacionais de plantão e afins – poderíamos também fazer uma autocrítica e nos dar conta que não somos o país amistoso, tolerante, caloroso e alegre que queríamos crer. Preconceito não ocorre só quando feito por russos, ingleses ou argentinos. E se quase ninguém nota, é porque a maioria aprova – o que é muito, mas muito mais preocupante. E isso lembra muito mais o Terceiro Reich do que a democracia plena na qual a gente finge que vive às vezes.

Cassiano Gobbet
Cassiano Gobbet é jornalista, formado pela Universidade de São Paulo e mestre em jornalismo digital pela Bournemouth University.

5 Comments

  1. 1) de ônus desnecessários, o Neymar está pegando todos os disponíveis na prateleira; 2) a torcida escocesa é considerada exemplo de correção no mundo todo na derrota e na vitória (embora esta última aconteça bem raramente nos últimos 35 anos). Não duvidaria que essa banana tivesse sido jogada por alguém do estafe do Neymar ou de um patrocinador. Rendeu a ele uma exposição avassaladora. Mas é mais provável que simplesmente tenha sido um idiota mesmo. Abs

  2. Post perfeito.
    E é bom frisar também que ainda não há provas de que a banana foi mesmo atirada por um escocês. Além disso, não me parece muito honesto querer associar essa atitude com as vaias que o atacante recebeu durante o jogo que eram um claro protesto ao hábito do brasileiro de se atirar ao menor contato.
    Inclusive, para mim, essa desaprovação dos britânicos deveria ser mais assunto do que o suposto ato de racismo. Afinal, daqui a pouco o santista pode estar na Inglaterra e se não mudar seu estilo, terá contra si além da pressão pela adaptação, as vaias de todas as torcidas adversárias. Sem dúvida, um ônus desnecessário para o candidato a craque.

    Abraços.

  3. texto impecável, mas o midiatismo rola porque esse tema ‘racismo’ vende, dá audiencia…

  4. Muito bom. Mas faria um pequeno adendo a uma frase. A indignação ocorreu porque o brasileiro se acha tolerante, amistoso, hospitaleiro e pacífico. Uma vez, em uma conversa totalmente informal, disse para uns estrangeiros que estávamos em guerra civil por conta da taxa anual de cerca de 50.000 mortes violentas (principalmente derivadas por conta de acidentes de automóvel e armas de fogo), número que representa mais ou menos todas as baixas norte-americanas no Vietnã.

    O espanto foi bastante razoável.

  5. Perfeito, Cassiano.

    Sobre o caso do Neymar, percebo que parte da imprensa força a barra para estender o rótulo de racista a todo torcedor da Escócia. Para esses, as vaias que o jogador recebeu durante o jogo foram racismo puro, e não tem qualquer ligação com o fato do Neymar simular faltas e lesões. Portanto, para esses jornalistas, quem não aceita o “estáculo” Neymar (incrível qualidade técnica, mas também o pior tipo de malandragem) só pode ser um racista/xenófobo desgraçado que não entende nada de futebol.

    É o típico caso de miopia seletiva. O fato é deturpado com a clara intenção de transformar o Neymar num Deus e amaciar o ego do público brasileiro (afinal, somos tão amistosos, alegres e honestos). É a mesma história do Carnaval. O Brasil adora divulgar ao exterior as imagens dos desfiles das escolas de samba, com mulheres praticamente nuas, para atrair turistas estrangeiros e depois aparenta indignação com a chegada de turistas interessados em sexo. É muita hipocrisia.

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