Cartolas, hienas e direitos de TV

Não vou gastar meu tempo tentando provar que não há ramo na economia brasileira mais entregue à anóxia cerebral do que o futebol. Entre os decision makers do setor, por exemplo, estão um chefe de torcida e um presidente de clube cujo português equivale ao quarto ano do primário. Mesmo assim, o capítulo que está se desenhando ao redor da questão da venda dos direitos de transmissão do Brasileiro, está fazendo superar qualquer expectativa em termos de inabilidade. Na atual negociação, os responsáveis pelos clubes estão demonstrando uma inteligência de limites unicelulares. Isso, na melhor das hipóteses.

A negociação coletiva da venda dos direitos de TV é reconhecida universalmente como a que consegue arrancar das emissoras os mairoes valores. A lógica é simples: as barganhas individuais fazem com que um ou dois clubes possam exigir um pouco a mais por conta de audiências maiores. A contra partida é a de que clubes menores passam a ter uma referência que joga contra eles – a emissora alega que está pagando X para o clube de maior audiência e portanto só pagará uma fração de X ao clube de audiência menor. O jornalista Erich Beting exemplifica em seu blog como o processo acontece na Espanha, onde Real e Barcelona se beneficiam e o resto paga a conta.

Quando a negociação é coletiva, o representante dos clubes, sabendo da arrecadação das emissoras, tem força para exigir mais porque senão vende para outro. A emissora nem chora, porque sabe que mesmo assim faturará muito, muitíssimo. É por isso que na Inglaterra, por exemplo, o faturamento quebra recorde atrás de recorde na negociação global e a liga até pode se dar ao luxo de pagar dinheiro aos clubes rebaixados durante duas temporadas, para que eles não quebrem quando deixam o Eldorado da Premier League. E a partir dos próximos anos, a competição ficará ainda maior porque uma lei passou a determinar que uma única emissora não possa deter todos os direitos de transmissão. Não é protecionismo, é o contrário – é uma garantia de que não haverá abuso de poder econômico.

Sabe-se lá por que, aqui, clubes como Botafogo, Cruzeiro, Grêmio e Coritiba, acham que poderão ganhar mais dinheiro se desafiarem a lógica econômica que vigora no mundo todo. Os dirigentes desses clubes argumentam agora que receberão mais no próximo contrato, assinado diretamente com a Rede Globo, do que recebem no atual vínculo. Isso pode até não ser mentira, mas é um sinal de que a cartolagem age de má-fé ou é capaz de um raciocínio pateticamente frágil.

No mundo todo, a valorização dos direitos de transmissão para TV estão próximos da saturação. Outra vez, trata-se de economia básica: há um momento em que o produto já está sendo vendido por um valor que, se for ultrapassado, começa a dar prejuízo para alguém na equação – emissora ou anunciante. Isso não ocorreu no Brasil ainda (na verdade está longe disso e é isso que o C13 queria explorar), mas na Europa, se aproxima disso em países como Espanha e Inglaterra. Por isso, mídia e clubes nesses mercados começam a prestar atenção em algo que a Globo já está comprando antes que os dinossauros que comandam os clubes se dêem conta – as novas mídias.

Espera-se que até o final da década, a entrega de material por mídias digitais (que hoje é burramente chamado de ‘Internet’ pela maioria dos executivos e dirigentes no Brasil) ultrapasse com folga a audiência da TV. Nos EUA, o americano já passa mais tempo diante do computador do que vendo TV. O desenvolvimento de novos gadgets e ferramentas vão continuar impulsionando a mídia digital e minando a TV, uma vez que esta tem um custo operacional muito maior, depende de concessão, está atrelada a grades de horário, etc. O “burramente” citado acima é porque os luminares gênios que gerenciam a questão, quando pensam em Internet, imaginam um nerd obeso na frente de um browser, mas não se trata disso. A tendência é que em poucos anos, o acesso ao entretenimento venha por ferramentas diversas e mesmo na TV, a programação não virá por canais, mas por fornecedores de conteúdo alternativos que não dependem de concessão, que podem operar com custos menores e que entregarão conteúdos muito mais direcionados.

Hoje, clubes que têm torcidas e audiências menores, estão rindo á toa porque ganharão muito mais dinheiro, mas é o riso da hiena. Na verdade, eles estão vendendo receitas que não existem, mas vão existir – e serão muito grandes. Não se trata de vender os direitos dos jogos para as pessoas assistirem num browser, mas para que elas possam vê-los de qualquer lugar. Ou seja: os clubes estão reajustando o aluguel de uma casa para um valor maior (embora menor do que o que elas pudessem ter) e se achando espertos, mas na verdade, não sabem que dentro dessa casa existe um tesouro que, por três anos (no mínimo) estará arrendado.

Flamengo e Corinthians devem sair com contratos de TV melhores que os atuais (embora seja plausível se perguntar se isso significará melhorias para os times, já que os dois clubes têm estatutos e conselhos absolutamente abaixo da crítica), mas o futebol brasileiro como um todo recebrá menos do que podia – seguindo o exemplo em vigor na Espanha (onde o próximo acordo deve voltar a ter uma venda coletiva). Os clubes menores não só ganharão menos que os grandes, mas vão ganhar menos do que poderiam ganhar numa venda coletiva. O trágico é que só se darão conta disso quando Inês estiver morta. Isso, claro, supondo que todo mundo esteja agindo de boa fé. E isso acho que ninguém duvida. Duvida?

PS: No Blog do Perrone, ele menciona o argumento da Globo para Fla e Corinthians terem mais receita. De fato, a emissora tem toda razão. Toda. Se os diretores dos clubes vivem em negação, naturalmente o problema é deles.

Cassiano Gobbet
Cassiano Gobbet é jornalista, formado pela Universidade de São Paulo e mestre em jornalismo digital pela Bournemouth University.
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