Arbitragem e lama

Há determinados dias em que você sabe que não deveria ter saído de casa, porque tudo – simplesmente tudo – dá errado. Só que não há escapatória e é preciso que se vá até o fim. Essa é a sensação desta temporada na Itália. E na semana passada, ela ficou ainda mais forte.

Quando se imaginava que todas as conseqüências do Calciocaos já tinham sido assimiladas, uma nova leva de bombas apareceu para jogar lenha na fogueira. A insistente Procuradoria de Nápoles não se conformou com os resultados dos colegas de Turim e foram mais fundo na investigação de inúmeras gravações envolvendo árbitros e dirigentes italianos, previamente arquivadas pelos magistrados piemonteses. E, é claro, desencavaram muito mais lama.

Os magistrados napolitanos levantaram mais 15 partidas sob forte suspeita, onde jogadores recebiam cartões amarelos e vermelhos, pênaltis inexistentes eram marcados e adversários recebiam “favores” de acordo com os interesses de Luciano Moggi, então chefão da Juventus.

Entre as novidades da investigação napolitana, o Messina, então dirigido por Mariano Fabiani, surgiu como principal implicado – além da Juventus, claro. Mas muitos outros resultados deixaram claro que o suposto poder dos outros clubes envolvidos (Milan, Fiorentina e Lazio) era muito mais limitado e sempre submetido ao maior interessado: a própria “Vecchia Signora”, favorecida em 10 dos 15 jogos.

Entre os jogos que têm sinais de irregularidade, o que mais chama a atenção é um empate sem gols entre Juventus e Milan, em dezembro de 2004. O árbitro Bertini não deu um pênalti claro de Zebina em Crespo, mas há casos mais escandalosos, como um empate entre Siena e Messina em que os sicilianos tiveram um gol irregular validado e os toscanos tiveram o zagueiro Portanova expulsos.

O furacão atingiu em cheio também o quadro da arbitragem, que já tinha sofrido uma reformulação. Dias antes da rodada, oito homens de preto foram afastados, entre eles, vários que estavam designados para os jogos do fim de semana. Nomes de relevo, como Paolo Bertini e Paolo Tagliavento. O impacto foi tão grande que a associação de árbitros teve até de chamar nomes das divisões menores na emergência.

Fabiani, hoje diretor de futebol da Salernitana, foi o maior “novo envolvido”, com participação direta na trama, segundo a procuradoria. Só que o cerne do esquema era o mesmo, com Moggi orientando pessoas-chave a fazerem trocarem “favores”. A sensação que ficou na Itália é que as investigações jamais conseguirão levantar toda a sujeira. Provavelmente, não é só sensação.

Além de uma reconsideração sobre a culpa dos outros punidos no escândalo (o Milan estuda a possibilidade de requisitar na justiça o título de 2004/2005, que ficou sem campeão), levantou-se a lebre sobre uma possível punição extra para a Juventus. Mas de acordo com juristas italianos, tal punição não se aplica, mesmo que se verifique que a extensão das vantagens obtidas pelo clube era ainda maior.

E ainda assim…

…num cenário de caos e vergonha, todas as indicações dão conta de que a Itália deve ser escolhida como a sede da Euro 2012, nesta quarta-feira, em uma votação secreta. Os italianos teriam seis dos doze votos do comitê que fecha a questão, batendo a concorrência das candidaturas conjuntas de Polônia-Ucrânia e Croácia-Hungria. Como explicar que a Itália consiga tal honra num momento em que atravessa o maior escândalo institucional de sua história?

Não é fácil explicar mesmo, mas se fosse necessário sintetizar em uma única razão, seria “falta de concorrência”. Apesar da lama infinita deixada por ‘Moggiopoli’, a Itália pode se considerar favorita porque tem, além da tradição esportiva, uma infra-estrutura de turismo de primeira, um mercado fortíssimo e um título mundial recém-conquistado.

“Mas e a lama?” A lama é grande, mas a Polônia, uma das concorrentes, tem um escândalo igualmente de largas proporções e na candidatura húngaro-croata, aparece o racismo como o problema mais acintoso. E nas duas candidaturas, toda a parte de infra-estrutura turística teria de ser feita, assim como a de estádios.

Sem deixar de lado a vergonha que será premiar um país enterrado em corrupção com a organização de um evento deste porte, sob o ponto de vista prático a Itália sediar a competição pela terceira vez é mesmo a escolha mais lógica.

Para o futebol do país, a organização do torneio deve ter também um impacto fortíssimo. O processo de privatização dos estádios deve entrar de vez nos trilhos e é provável que a maioria dos participantes da Série A de 2012/2013 comecem o campeonato donos de seus próprios campos. Espera-se – sem muita convicção – que através de um processo onde a corrupção não seja a maior vencedora.

O desastre de Manchester

Entre todos os atingidos pelo massacre da Roma em Manchester, certamente o maior não foi o brasileiro Doni, que encaçapou a bola sete vezes. O capitão inconteste da Roma, Francesco Totti, é que deixou o gramado como o grande derrotado numa noite na qual certamente ele não foi o pior em campo.

“Totti, um craque incompleto”. Essa manchete, feita pelo jornal La Stampa, de Turim, sintetizou a sensação que a Itália estava em relação ao jogador que ela gosta de pensar que é o mais talentoso: capaz das maiores façanhas dentro do Olímpico, mas um fantasma em situações nas quais o time precisa dele.

Não se questiona a capacidade do romanista nem a sua importância para a Roma. Contudo, é igualmente indiscutível que ele também é capaz de alternar momentos excelentes com noites incolores – ou pior – como a de Old Trafford. A comparação mais feita na imprensa italiana, a este respeito, foi a contraposição do jogo na Inglaterra com a partida em Lyon, na qual Totti comandou a Roma para a classificação.

A síntese da desgraça romanista em Totti é pertinente até por causa de seu apego à camisa da Roma. Da mesma maneira que o clube da capital derreteu uma temporada até então considerada boa, o meio-campista passou a ser visto como o “copo meio vazio”, ao invés do “copo meio cheio”. E o próprio jogador se mostrou abatido com o resultado, até pelo modo como o insucesso era particularmente seu, já que a Roma também é um clube “seu”.

A fidelidade de Totti ao seu clube – fato absolutamente notável nos dias de hoje – faz com que ele seja penalizado em sua carreira. Com raras exceções, o capitão precisa carregar nas costas um time que não está à altura dos grandes italianos e europeus. Jogasse no Milan, Real Madrid ou Manchester United, seu trabalho seria dividido com outros craques. No Olímpico, é sempre a tarefa de matar um leão por dia. Como se exigia de alguns no Circo Máximo da mesma cidade, dois milênios atrás.

A recuperação psicológica de Totti é pivotal para a entrada da Roma com maiores ambições no próximo Italiano, um campeonato que deve ser um dos mais disputados dos últimos anos. Se o capitão estiver bem e mantendo o elenco unido, alguns reforços podem deixar o time de Trigoria como um “azarão” na luta pelo título que deve ser protagonizada por Inter, Milan e Juventus; um Totti sem confiança é a rota romanista para o final de um ciclo que soa muito promissor.

Bombando

E se a Série A segue sem despertar emoções, a segunda divisão vai desenhando uma temporada excitante a partir de setembro. Os três “favoritos” para a promoção, Juventus, Genoa e Napoli, venceram suas partidas e seguem firmes rumo à Série A (lembrando que os dois primeiros se classificam direto e os colocados entre a terceira e sexta posições decidem a última vaga num playoff).

O Genoa foi o que mais empolgou na rodada, ao bater o Bologna (hoje sexto colocado) com um sonoro 3 a 0, reflexo de um futebol muito superior. As vitórias de Juventus e Napoli foram menos expressivas, mas mesmo assim, a elevação dos três clubes significaria um acréscimo de 38 campeonatos aos participantes da divisão máxima.

O técnico juventino, Didier Deschamps, já disse que com mais 15 pontos (ou seja, chegando a 80), a Juve estaria garantida na primeira divisão. O clube conta tanto com isso que já está se movendo no mercado para assegurar reforços. Além de Grygera e Salihamdzic, já garantidos a custo zero, a Juve luta para fechar com o volante Frings e com um atacante (o sonho é Luca Toni).

Genoa e Napoli também chegam nesta reta final com fôlego e disposição, fazendo muitos planos para a Série A, mas ainda sem contar com a certeza juventina. Na rodada desta terça,o time da Ligúria pega o Vicenza e o partenopeu enfrenta o Treviso. Seus concorrentes diretos, Rimini, Mantova e Bologna, têm duelos de dificuldade bem diferente: o primeiro viaja à Turim para pegar a Juventus; o Mantova enfrenta o lanterna Arezzo e os emilianos pegam o Pescara.

– Eis a seleção Trivela da 32a rodada:

– Dida (Milan); Panucci (Roma), Chivu (Roma) e Favalli (Milan); Pesce (Ascoli), Pinzi (Udinese), Montolivo (Fiorentina), Kaká (Milan) e Totti (Roma); Figo (Inter) e Cavani (Palermo)

Cassiano Gobbet
Cassiano Gobbet é jornalista, formado pela Universidade de São Paulo e mestre em jornalismo digital pela Bournemouth University.
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